Entrevista/Catherine Millet
Uma mulher contra o sexualmente correto
Palestrante do ciclo Fronteiras do Pensamento na última
segunda-feira, a escritora francesa Catherine Millet, 70 anos, diretora
da prestigiosa revista ArtPress, tornou-se mundialmente conhecida com o
livro “A vida sexual de Catherine M.”, no qual relatou a sua intimidade
com centenas de homens. A obra vendeu quase três milhões de exemplares.
Recentemente, junto com Catherine Deneuve, Millet organizou o manifesto
contra o movimento #MeToo. Ela sustenta que há exagero no que chama de
vitimização permanente das mulheres diante das investidas masculinas.
Nesta entrevista, defende a cantada e a arte.
Caderno de Sábado – Tendo sido uma das protagonistas
francesas, junto com Catherine Deneuve, do manifesto contra o movimento
começado nos Estados Unidos que ficou conhecido como “#MeToo”, no meio
da polêmica a senhora disse que as mulheres exageram na vitimização em
relação ao poder masculino. São afirmações espontâneas ou só para
provocar?
Catherine Millet – É sempre espontâneo. Publicamos
um texto no jornal “Le Monde” sobre o assunto. A primeira surpresa foi a
repercussão. No dia seguinte, havia pedidos de entrevista do mundo
inteiro. Catherine Deneuve contou isso. Desse ponto de vista, foi
calculado.
CS – A investida contra o assédio é uma reação ao
multissecular poder masculino ou um novo imaginário social que
modificará a relação entre os sexos e até mesmo os jogos de sedução e de
conquista?
Millet – Esses movimentos sociais tendem a
estender-se por décadas. Pertenço à geração da liberdade sexual. Dos
anos 1960 aos anos 1990 houve uma grande abertura para a sexualidade. O
sucesso do meu livro “A vida sexual de Catherine M.” tem a ver com esse
contexto de reação ao conformismo burguês. Agora, ao contrário, entramos
num período no qual predomina o medo de certas formas de sexualidade.
Há um recuo para uma intimidade estritamente conjugal. Uma jornalista
finlandesa me disse há poucos dias, em Paris, que uma pesquisa revelou
que os jovens casais da Finlândia transam pouco. Talvez seja um
indicativo de que as novas gerações manifestam um apetite sexual menor.
Os sociólogos talvez possam explicar a causa desse desinteresse.
CS – Na Suécia parece que se caminha para um contrato
explícito. Antes da relação, mesmo em casal, é preciso que haja um sim
categórico.
Millet – Há projeto de lei tramitando no parlamento
sueco a esse respeito. A gente ri, há, porém, uma tendência, mesmo fora
da Suécia, a adotar algum tipo de contrato explícito, não escrito, mas
oral. Isso, de certa maneira, já existe nos Estados Unidos, onde, em
algumas universidades, pede-se um consentimento explícito antes de ir
para a cama. Gera-se uma situação curiosa: “Você está de acordo?”, “Não
sei, vou pensar, respondo em seguida”, “Não demora”. O desejo acaba.
CS – Jean Baudrillard dizia que havia um paradoxo na cultura
americana. Numa seita não se fazia sexo por causa do juízo final. Na
universidade também não se fazia por medo de processo por assédio.
Millet – A palavra paradoxo é muito adequada. O
movimento “MeToo” é feminista e se vê como progressista, destinado a
avançar a sociedade avançar. As suas consequências, do meu ponto de
vista, são em muitos aspectos regressivas, conservadoras. No campo da
arte nem se fala. Chegou-se a pedir censura em relação a certos
artistas, condenação de obras, filmes, quadros, peças, manifestações
culturais. É um paradoxo que artistas que se veem com progressistas e de
esquerda protagonizem demandas que eram típicas da direita mais
conservadora.
CS – É um retorno do puritanismo? Como preservar a sedução e,
ao mesmo tempo, proteger as mulheres e combater o assédio que é real?
Millet – É uma nova forma de puritanismo. Precisamos
esperar para ver como as nações vão evoluir do ponto de vista legal.
Muitos serão os processos judiciais. Que leis vão ser aprovadas? Quem
será condenado? Espero que os juízes tenham bom senso. Não creio que se
chegará ao ponto de proibir as cantadas e de limitar o jogo de sedução.
CS – A França está na linha de frente da resistência?
Millet – Talvez. Existe uma velha tradição francesa
de libertinagem. Incrível é que essa reação tenha começado com o pessoal
do cinema. Algumas jovens atrizes francesas aderiram ao movimento
americano. Em contrapartida, uma celebridade como Catherine Deneuve
ficou do nosso lado. Juliette Binoche, outro monstro sagrado do cinema
francês, concedeu uma entrevista ao jornal “Le Monde” na qual disse ter
sempre sabido se defender das tentativas sexuais inapropriadas de
produtores. Nathalie Baye, que foi casada com Johnny Hallyday, declarou
que nunca foi assediada. Uma top-modelo ironizou. Ela nunca teria sido
assediada por fotógrafos talvez por não ser tão bonita quanto se acha.
CS – O manifesto francês falava em direito masculino de
importunar as mulheres. Qual a diferença real entre importunar e
assediar?
Millet – Importunar significa incomodar, encher o
saco, aborrecer. Ninguém pode ser denunciado à polícia por ser
inoportuno. Assédio é outra coisa, algo grave. Dar uma cantada grosseira
não é crime.
CS – A senhora falou que lamentava não ter sido estuprada
para saber se superaria o trauma e relativizou as situações em que
homens se esfregam nas mulheres no transporte público. Foi um exagero?
Millet – No metrô de Paris existem duas categorias
de mulheres: as que se dizem traumatizadas e as que envergonham o homem
denunciando-o na frente de todo mundo. O sujeito, em geral, sai fora na
estação seguinte depois de tamanha vergonha. Tudo depende da relação que
se tem com o próprio corpo. As mulheres que sentem medo dos homens que
se esfregam são extremamente narcisistas. Ao menor contato, sentem-se
violadas. Uma roçada não é uma penetração. Uma jovem jornalista,
militante do MeToo francês, acusou de assédio um colega seu. Ele teria
beliscado as nádegas dela no corredor. Sem dúvida, não se faz isso. Era
um cara grosseirão. Mas ela se considerou atingida na integridade do seu
corpo. É um exagero. Seu corpo continuou íntegro, inteiro. Ao falar em
integridade foi como se tivesse sido estuprada. O movimento MeToo é
perpassado por um fundo extremamente narcisista.
CS – Há contradição entre empoderamento feminino e vitimização?
Millet – MeToo encurrala as mulheres na fragilidade e na posição de
vítima. A nossa visão é outra: as mulheres podem se defender. Li no
“Libération” a entrevista de uma advogada especializada em assédio que
aconselhava as mulheres e nem sempre ir à justiça para evitar longos
processos nos quais se afundam no trauma, sendo mais importante superar.
Temo as acusações em prova que execram pessoas publicamente.
CS – A partir de certo nível social a dominação masculina é um mito?
Millet – A resposta é complicada. Depende da classe
social, mas também do lugar. As classes médias e altas parisienses não
vivem na dominação patriarcal. Homens e mulheres vivem em relação mais
ou menos de igualdade. No meio popular ainda há dominação masculina. As
mulheres exercem enorme poder nas famílias de classe média. São elas que
decidem a compra de um apartamento, sobre filhos, até sobre o projeto
profissional dos maridos. No sul da França, tenho uma casa lá, numa
região vinícola, entre camponeses, é diferente. Os homens mandam. Há uma
tradição patriarcal e os homens são proprietários das terras.
CS – Artistas encontram-se em qual situação? No Brasil,
fala-se em vulgarmente em “teste do sofá” para jovens que sonham em
trabalhar na televisão. Jovens em começo de carreira estão mais
expostas, não?
Millet – Existe o equivalente francês. Juliette
Binoche, na entrevista que já citei, disse que ela sempre soube se
livrar desse tipo de situação. Eu também me deparei com esse tipo de
coisa no meu meio profissional. Que mulher não enfrentou algo
semelhante? É preciso mostrar toda a competência profissional que se
tenha para não ter de passar pelo teste do sofá. Não se é obrigada a
aceitar.
CS – O livro “A vida sexual de Catherine M.” mudou a sua vida. Era mesmo autobiográfico?
Millet – Mudou até a minha vida sexual. Claro que
era autobiográfico. Salvo ensaios, só escrevo narrativas
autobiográficas. Contei minha vida sexual e meu livro foi muito bem
recebido por toda parte. Ninguém me ofendeu. Uma vez, numa feira do
livro, na Romênia, alguém me disse algo. Lancei o livro em Nova York e
tive resenhas muito positivas nos jornais. Claro que sofri críticas de
feministas ortodoxas. O contato com o público foi bom. Não enfrentei
ataques moralistas, puritanos ou coisa semelhante. Andei pelo mundo
inteiro com meu livro.
CS – Muitas mulheres viram no seu livro uma prova de liberação.
Millet – Sim, muitas gostaram por eu levar minha
vida sexual como um homem, ou seja, como parecia ser privilégio
masculino. Algumas feministas me criticaram por ser muito passiva nas
minhas relações sexuais. Já que o senhor está me forçando a falar de
coisas íntimas, sou obrigada a falar. Eu gostava muito de sexo anal. Por
certas feministas é uma maneira da mulher se colocar numa posição
passiva. Sempre dei a mesma resposta: na minha vida social sou muito
ativa, faz 45 anos que dirijo uma revista de arte, não tenho problema
com isso. Na cama, porém, me agrada certa passividade em alguns
momentos. Numa peça de Alfred de Jelineck um homem poderoso gosta de
práticas sadomasoquistas. É comum. Poderosos podem gostar de posições
passivas sem que isso tenha a ver com a personalidades deles no
restante.
CS – Por que o livro mudou a sua vida sexual?
Millet – Textos autobiográficos afetam os autores de
uma maneira quase incontornável. Ao terminar de escrever não se é mais
quem se era. Não tenho mais a mesma espontaneidade. Nem a mesma
ingenuidade. Eu me veria como a personagem do meu livro.
CS – O seu livro foi inicialmente considerado pornográfico, não?
Millet – Não. O grande Bernard Pivot, no seu
programa, na época do lançamento, diante de meu marido e de mim, elogiou
a qualidade literária do meu livro. Morreu ali a possibilidade de que
fosse reduzido à pornografia. Mesmo que digam isso, eu não me importo.
Tanto faz. A França não tem esse tipo de pudor em literatura. Já tivemos
o Marques de Sade, Casanova, Balzac, Bataille.
CS – Lamenta a liberdade perdida?
Millet – Não perdi a liberdade. Mudei. Já não tenho a
mesma idade… Não se tem a mesma vida sexual ao longo da vida. As
coisas mudam com o tempo. Isso vale para todo mundo.
CS – A senhora é uma crítica de arte conhecida. Jean
Baudrillard atacou a arte contemporânea como inútil. Ela pode ser
compreendida por um público mais amplo e não iniciado?
Millet – Acho ótima que exista um distanciamento
entre arte e grande público. Na arte contemporânea tem de tudo, bons e
maus artistas. Se Baudrillard estivesse vivo, constataria que se tornou
um horror quanto à dominação da especulação financeira na arte
contemporânea. O artista é um motor que abre caminho para que certas
coisas possam ser compreendidas. O público, de qualquer maneira, é cada
vez maior. Jornalistas podem achar que certas obras não são arte, mas o
público tende a aceitar e admirar. A questão das artes plásticas não é
diferente da questão da literatura. Quantas pessoas leem Rousseau,
Montesquieu e Shakespeare? O acesso à cultura é maior hoje. Não podemos
nos queixar. O consumo cultural sempre foi minoritário. Se as pessoas
preferem a Copa do Mundo é um direito delas. Mas dá para fazer as duas
coisas. A cultura é um bem que ajuda a compreender a vida interior e
exterior. A arte em nossa civilização está associada ao saber. Somos os
herdeiros do Renascimento. Hoje a decifração feita pelos artistas vai
além da natureza ou do corpo humano: questões psicológicas, sociais. A
arte é uma forma de saber que não encontra substituto. Aprende-se mais
sobre a natureza humana lendo Proust e Balzac que qualquer filósofo. A
pessoa que melhor decifra a sociedade francesa atual não é um sociólogo
ou filósofo, mas Michel Houellebecq.
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Reportagem Por Juremir Machado da Silva
Fonte http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/07/10991/entrevista-com-catherine-millet/
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