“O
esporte pode sim ser alienante, como qualquer produto da indústria
cultural, mas ele também produz significados bons”. Foto: Guilherme
Santos/Sul21
‘O futebol nunca foi o ópio do povo’, diz pesquisador que estuda masculinidade no esporte
Fernanda Canofre
A agenda do pedagogo e técnico administrativo da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), Gustavo Bandeira, é definida pelos jogos
do Grêmio de Porto Alegre. Desde os 5 anos, ele é frequentador assíduo
das arquibancadas do clube, ao lado do pai. Foi da paixão pelo futebol
que surgiu a ideia de aliar a pesquisa sobre construção do conceito de
masculinidade ao futebol. A ideia veio de uma professora. Bandeira
pensava em analisar a tese através de filmes de comédia norte-americana,
como a série American Pie. E virou um campo de pesquisa.
“A ideia era ver como a gente age nos estádios, como torce, contra
quem a gente grita, a favor de quem a gente grita, quais os sentimentos
são nobres para serem mostrados e quais são proibidos naquele espaço. Eu
resolvi olhar, dentro daquele espaço, como a masculinidade aparecia”,
conta ele.
Além da formação em Educação, Bandeira fez uma especialização em
Jornalismo Esportivo. O estudo acabou virando uma das hipóteses de
pesquisa do grupo. A ideia é que um indivíduo aprende a ser homem ou
mulher nos espaços de sociabilidade. Entre eles, os estádios de futebol,
que sempre foram interditados, de certa forma à elas.
Em tempo de Copa do Mundo na Rússia, com casos de assédio de
torcedores a mulheres estrangeiras, gritos homofóbicos, episódios de
racismo e xenofobia dentro e fora de campo, Bandeira conversou com o Sul21
sobre todas as questões que o futebol suscita sobre a sociedade e
porque ele é o esporte que tem mais poder de ser catalisador de tudo
isso:
Sul21: Parece que o Brasil ainda não entrou no clima de Copa
este ano. Comércio não está decorado, como costumava, nem as ruas, não
há muita comemoração em dias de jogos. O que tem de diferente neste
momento?
Gustavo Bandeira: Em 2014, dois meses antes da Copa
não tinha clima de Copa. Só tinha o “não vai ter Copa”, manifestações
nas ruas. Clima de Copa se dá na Copa.Tem ainda um problema muito forte
vinculado ao símbolo da seleção brasileira, que é a camisa amarela da
CBF, hoje muito mais vinculada ao impeachment da Dilma do que à seleção
brasileira de futebol. Eu não era fã do trabalho da Dilma, mas como esse
que veio depois é pior, o governo dela parece até bom. Mas eu não uso a
camisa da CBF, não sinto vontade de usar a camisa da CBF e eu sempre
tive e a usei. Acho que a marca desse símbolo, vinculada a um movimento
político, num momento em que estamos extremamente polarizados, faz com
que algumas pessoas o rejeitem. Por outro lado, é um país em crise. A
gente já teve outras crises, em outros momentos de Copa, mas é uma queda
de um momento que a gente vinha melhorando, mesmo que sem grandes
conquistas ou revoluções, ao entendimento de boa parte da população.
Para a minha geração, que é dos anos 1980, pós-Constituição, acho que
esse foi o primeiro baque econômico e de costumes. A gente achava que
direitos humanos seriam uma conquista progressiva e contínua, que teria
mais direitos humanos. Foi um equívoco da minha geração, talvez isso
ajude a atrapalhar o espírito da Copa.
Sul21: Isso é inédito, não? Ou houve outra Copa assim?
Gustavo: No jogo de sexta (22), eu moro perto de uma
escola e era engraçado ver as crianças torcendo. Mas os gritos delas,
na hora do gol, foram os únicos. E a gente teve o 7 a 1 aí. Também
ajuda. Daqui a pouco, se o Brasil ganha bem do México, se acontecer um
Brasil X Argentina ou Brasil X Uruguai, esse clima de Copa volta. Acho
que tem uma frustração da derrota que é importante. Porque, ao mesmo
tempo, na sexta as ruas estavam desertas. Talvez as pessoas não
estivessem ali torcendo, vibrando, mas elas mudaram sua rotina em função
do jogo.
Sul21: O professor da USP, José Miguel Wisnick, analisa o
lado sociológico do futebol num livro chamado “Veneno Remédio”, onde ele
fala que, no Brasil, “a incapacidade de combinar a paixão e a crítica
tornou-se um traço recorrente”. Ele chega a usar os termos “veneno da
crítica versus droga euforizante”. Concordas com isso? Ou agora parece
ter mudado?
Gustavo: O futebol nunca foi o ópio do povo. Nunca
foi. Muito antes pelo contrário. Em 1973, jogou aqui no Beira-Rio, para
mais de 100 mil pessoas, público nunca antes registrado, a seleção
brasileira contra a seleção gaúcha. Esse amistoso aconteceu porque o
Brasil ia jogar contra Portugal, para comemorar o aniversário de
Independência, e a seleção brasileira teve a pachorra de não convocar o
Everaldo, jogador do Grêmio, tricampeão do mundo em 1970. Os gaúchos
ficaram revoltados e resolveram marcar um amistoso. Tinha Figueroa,
Anchieta, chilenos, uruguaios, catarinenses, uma seleção Gre-Nal contra a
brasileira. O Hino Nacional foi vaiado, bandeiras do Brasil foram
queimadas e nós estamos falando de 1973, cinco anos depois do AI-5 ter
sido aprovado. Foi o único espaço possível de fazer isso. Se fosse feito
isso no Centro de Porto Alegre, você estaria preso. No Beira-Rio, não
aconteceu nada.
O esporte pode sim ser alienante, como qualquer produto da indústria
cultural, mas ele também produz significados bons. [O futebol] apareceu
como ópio do povo, porque a gente sempre teve um marxismo muito chato,
que ou você está 100% do tempo fazendo a revolução ou você não serve. Ou
você está lutando o tempo inteiro para conquistar os meios de produção
ou você é um idiota. O que é um marxismo vulgar, porque Marx não tem
nada a ver com isso. Vou culpar a esquerda, campo no qual eu me
localizo, sem dúvida, mas a gente tem um problema que é de um certo
preconceito ao que é popular. Tem preconceito ao futebol, ao Carnaval,
às festas de rua. Hoje é meme nas redes sociais e todo mundo brinca com
“enquanto você grita gol eles te exploram; enquanto você vê um filme
iraniano também”. O futebol quando aparece é elitizado, mas a América
Latina como um todo conseguiu popularizar. Por mais que as elites
continuem comandando o futebol, que nas federações, por exemplo, não
tenha “povo”, a representação ainda é popular.
Sul21: Esse afastamento entre torcida e seleção brasileira, a
única da América Latina que não se despediu com um amistoso antes de ir
pra Copa da Rússia, tem a ver com a figura do herói do time, Neymar
Jr.? Apesar de ser um grande jogador, ele é muito mais criticado do que
amado pela torcida.
Gustavo: Para a qualidade que o Neymar tem, ele é
muito rejeitado. Especialmente nessa geração dele, porque ele é muito
melhor que os outros. A gente teve Copas do Mundo que o Romário não foi
e, não só não tivemos nenhum problema, como ganhamos. Em 1998, ele foi
cortado e fomos vice-campeões. Hoje, nem nós que criticamos o Neymar – e
eu me coloco aí – imaginamos a seleção sem ele. Mas não sei se é só
ele. Acho que o Kaká também não tinha essa representatividade.
Sul21: Por que será?
Gustavo: São jogadores que são feitos fora do país.
No caso do Kaká, com a sua formação toda, ele é o anti-jogador, ele é
branco, de família rica, fala bem. Teve um presidente do São Paulo que
fez uma frase péssima, horrorosa: “a gente deveria tentar trazer o Kaká
porque ele é cara do São Paulo, ele tem todos os dentes na boca”.
Mostrando essa lógica elitista mesmo. O Neymar é um cara
multimilionário, ele é um astro global antes de qualquer coisa, não é
brasileiro. A gente tem problema com ele, mas a Argentina também tem com
o Messi. Esses superastros são diferentes do que tínhamos antes. O
Ronaldinho representava bem porque tinha um fenótipo que remete ao
futebol brasileiro, ele fazia gol e sambava, o sorriso, o drible. O
Neymar é brigão, é mimado, então, tem problema sim com essa figura. Mas,
também acho que a gente teve, desde o início dos anos 1990, um aumento
muito forte da relação do clubismo. Eu não paro pela seleção brasileira,
eu paro pelo Grêmio. Na década de 1990, quando tinha amistoso da
seleção, não tinha aula na universidade. Na quarta-feira, eu trabalho na
UFRGS, as pessoas estavam ligando para saber se teria aula, em plena
Copa do Mundo. A seleção perdeu um pouco desse fenômeno, acho que a
agenda dos clubes pode ter tomado um pouco.
Sul21: Essa questão do Neymar tem a ver com as tentativas de
cavar falta, de ser “cai-cai”? O próprio Tite falou várias vezes sobre
querer que a ética pautasse seu time. O Juninho Pernambucano, ex-jogador
do Vasco e do Lyon, disse em uma rede social que é assim que jogadores
brasileiros aprendiam desde sempre e que agora precisava mudar. Como a
gente começou a questionar isso?
Gustavo: Eu adoro o Tite, acho ele um treinador
genial, o único problema é ter treinado o Inter e ter sido campeão, fora
isso ele é maravilhoso (risos). Mas, acho que ele tem um discurso
moralista, semi-religioso que me incomoda um pouco. O Tite foi campeão
da Libertadores com o Emerson Sheik (Corinthians), que mordeu o zagueiro
do Boca Juniors. Então, não é assim que funciona, tem muita historinha.
Sul21: E essa cobrança por mais “ética” da própria torcida?
Gustavo: Eu não sei, porque se pensar sobre o 7 a
1, por exemplo, vão ter vários depoimentos na hora que as pessoas diziam
“faltou dar um soco num alemão, faltou chutar um alemão”. A
representação da Copa de 1950, o grande drama brasileiro, as pessoas
diziam “isso só aconteceu porque o Bigode não deu um soco no Obdulio
Varela”. Acho que sempre existiu e continua existindo. O problema do
Neymar está vinculado à simulação, ao exagero, à antipatia dele. Eu acho
que tem um discurso hegemônico pelo jogo limpo sim, que antes não
existia.
A gente tem um fenômeno curioso na seleção. A gente tem a troca de um
treinador, o Dunga, de uma característica muito viril, de ganhar a
qualquer preço, jogando mal e coisa e tal, pra um Tite que tem essa
polidez toda, um bom falar, às vezes meio chato. Entre o ganhar de
qualquer jeito e o ganhar por merecimento, a grande lógica do Tite, é
mais bonito o segundo. Mas não sei se a gente não vai querer ganhar com
gol impedido, com pênalti que não foi. A gente está lidando com novas
tecnologias, com o VAR (arbitro de vídeo), mas e se a gente não tivesse
esse replay, ia reclamar tanto? É tudo isso junto e combinado, não é uma
explicação única. Então sim, a gente tem uma antipatia ao Neymar, não
porque a gente é mais moralista, mas porque foi ele que fez. A figura do
Neymar como sonegador de impostos, num país que, nos últimos anos,
escolheu a corrupção como adversário, como inimigo. Tem a vinculação de
ética? Pode ser, mas tem o Tite que é o anti-Dunga e do Dunga ninguém
gostava. E mais, tem o acréscimo de tecnologia e não dá mais pra fingir.
Se você fingir a câmera vai pegar e você leva cartão. Ela te dá menos
espaço para burlar a regra.
Sul21: O Wisnik, em seu livro, também cita um comentarista
francês, Pascal Boniface, que dizia que entre as superpotências dos
diversos campos, o Brasil no futebol, seguia sendo o único amado, que
fazia as pessoas torcerem por ele. Hoje, isso parece que mudou. Nas
redes sociais, pessoas de outros países torcem mais contra do que a
favor. Por que será?
Gustavo: Saiu uma enquete que, os países que não tem
representante na Copa, ainda torcem para o Brasil. Talvez nos outros
países, aí vou dar um palpite, estejam tomados pela lógica torcedora. O
Brasil é um adversário no jogo. Apesar de eu torcer sempre contra os
Estados Unidos, era e é maravilhoso ver o time de basquete deles
jogando. E não sei se hoje a gente tem um jogo tão bonito e tão
diferente quanto a gente tinha antes. Todos esses torcedores continuam
amando o futebol do Ronaldinho Gaúcho, o drible, a brincadeira. O
problema pode ser estético. O jogo do Brasil hoje não é bonito, nosso
time joga muito parecido com times europeus, até porque todos os
jogadores brasileiros jogam na Europa. Hoje, entre os 11 titulares, só o
Fagner não joga na Europa, mas já jogou. Antes, ninguém fazia o que o
Ronaldinho fazia. Tem a ver também como o Brasil como produto de
exportação. Era muito fácil gostar desses queridos que, quando jogam
futebol até ganham, mas não entram em outros lugares. E o Brasil, bem ou
mal, esteve como sexta economia do mundo (não está mais), pleiteou uma
cadeira na ONU, tentou se colocar como um país grande. Talvez a seleção
brasileira pudesse ser entendida como um produto de exportação, como a
gente diz, pra gringo ver, como um produto de venda. Hoje nosso produto é
igual ao dos outros.
Sul21: Tu pesquisas a questão da masculinidade no futebol.
Agora, na Copa, a gente viu os episódios de assédio, alguns
protagonizados por brasileiros e sendo relativizados. No meio do ano, a
seleção feminina ganhou o heptacampeonato e teve pouca repercussão na
mídia e entre a torcida. Por que o futebol é um ambiente masculino?
Gustavo: A seleção feminina jogou a Copa do Mundo
no Canadá e a Marta colocou seus joelhos em gramado sintético. Duvido
que o Messi, Cristiano Ronaldo ou Neymar aceitassem isso. O SporTV, que
transmite a Copa do Mundo, transmitia a Copa do Mundo de mulheres no
SporTV2, porque no 1 passava a série B do Campeonato brasileiro, de
futebol masculino. Todo esporte é masculino. Pierre de Coubertin, quando
criou os jogos olímpicos modernos, ele fez uma atividade para homens e o
esporte como um todo constrói valores de masculinidade. Os homens que
jogam futebol podem se querer mais homens por isso. Se você não sabe
jogar futebol, se você não gosta de jogar futebol, você tem algum
problema de masculinidade. As mulheres, quando jogam, tendem a ser
chamadas de “menos mulheres”. Em cada cultura, quando o esporte é
importante para ela, é um esporte de homens.
Com isso a gente tem o jogo jogado por homens, a imprensa esportiva
que é masculina, os torcedores que são homens (ainda que tenha um
aumento das mulheres e isso é uma grande conquista). Num ambiente 100%
masculino, comportamento mais brutos, mais viris, são autorizados, os
homens se dão esse direito. Se um homem diz que gosta de futebol, outro
diz pra ele: “que bom, qual teu time”. Se uma mulher diz que gosta,
perguntam qual a regra do impedimento, a escalação de 1923 do Juventus
da Moca no returno, porque a mulher precisa provar. Quando os torcedores
dizem que é uma brincadeira, que não é violência, o mais grave é que
eles não estão necessariamente mentindo. Eles aprenderam assim. O
machismo, que não é exclusividade do futebol, é da sociedade, nos
autoriza a insultar mulheres, a fazer piadas, provocações inadequadas.
Por mais que a gente esteja vendo esses fenômenos horríveis, posso
olhar pra isso como “copo meio cheio” também. Posso dizer que em 2014,
2010, 2006 aconteceu também e a gente nem reportava isso, porque as
mulheres também entendiam que era assim mesmo e aceitavam. A gente tem
que pensar que o futebol está dentro de uma cultura machista, tem um
reforço porque é entendido como um ambiente exclusivo masculino, que faz
com que essas manifestações sejam autorizadas, como em outros lugares
não seriam. O que os brasileiros disseram na Rússia, não posso dizer num
ambiente de trabalho.
Sul21: E as consequências disso? Uma pesquisa recente
mostrou que o número de ligações ao 180 (número para denunciar casos de
violência contra mulher) aumenta em dias de jogo de futebol, por
exemplo.
Gustavo: É isso, é um país violentíssimo, onde a
cada 11 minutos uma mulher é estuprada. Quando você naturaliza o
machismo, em qualquer contexto, o futebol não é o único, mas é um
importante, entra junto nesse contexto e naturaliza porque “é
brincadeira”. Mesmo que você “esteja só brincando”, você está dizendo
que pode estuprar uma mulher, que ela é uma cadela, uma vagabunda, que
ela não pode reclamar. Para esse ministro, que é um imbecil, talvez
dignidade seja para seres humanos e talvez pra ele mulheres ainda não
sejam humanas (o ministro do Turismo, Vinicius Lummertz, disse que episódios de assedio na Copa foram exagerados porque “ninguém foi assassinado”).
Porque, sempre que a gente está discutindo homofobia, racismo,
machismo, nós estamos falando de direitos humanos e não há no mundo,
ninguém, que seja contra os direitos humanos.
O problema dos reacionários é quem eles entendem como humanos.
Conversando com os torcedores, se isso era xingamento ou brincadeira –
eu parto da hipótese de que é o primeiro, eles, o segundo – o que
acontece é que, mesmo quem está acompanhando, está entendendo que existe
uma diferença muito importante entre homens e mulheres, entre homens
brancos e homens não-brancos, entre heterossexuais e não-heteros. Mesmo
que seja brincadeira, você está ensinando que as mulheres são menos, que
elas não são sujeitos, que eles podem ter propriedade sobre seus
corpos. Quando você faz piada sobre mulheres, você diminui as mulheres e
ensina isso às crianças. O exemplo mais clássico que existe é quando
uma mulher é abordada de forma inadequada numa festa e o sujeito que fez
a abordagem, quando vê que ela está acompanhada, pede desculpa ao
acompanhante.
Sul21: A questão do racismo também está nessa Copa. Entre
todos os técnicos, há apenas um negro (do Senegal), os narradores seguem
se referindo às seleções africanas como “fisicamente fortes”, “futebol
tático fraco”.
Gustavo: Físicas, ingênuas, violentas. Todos os
jogadores africanos jogam na Europa. A Copa é um confronto entre as
confederações, até acaba suscitando discursos éticos, mas se parar para
olhar, nos Jogos Olímpicos, isso também acontece. Sempre tem alguém pra
dizer que os negros correm mais a curta distância. Só que a competição
não é entre negros e brancos, mas entre atletas de alto rendimento. Isso
está dentro das ideias pré-concebidas. Num confronto entre duas equipes
, o futebol autoriza isso, ler o confronto sempre de A contra B, ver
que joga contra, nunca com, analisar os dois times de forma separada,
não pelo enfrentamento. Nessa diferenciação, se tem uma seleção europeia
e uma africana, onde a gente vai buscar os elementos para descrevê-las?
Na cultura. Não vamos buscar no que eles estão jogando. É o que gente
fala nas violências do futebol. Eu tive a oportunidade, durante a
pesquisa, de acompanhar duas vezes a torcida do Grêmio brigando com a
arbitragem. Uma vez com uma árbitra assistente, que marcou corretamente
um escanteio contra o Grêmio, num jogo contra o Vitória da Bahia, e ela
virou “puta”, “vagabunda”, “vadia”. No mesmo campeonato, o Grêmio jogou
contra o Cruzeiro e um bandeirinha homem, corretamente, marcou um
pênalti contra o Grêmio, porque a bola bateu no braço do zagueiro e o
juiz não tinha visto. Ele virou “viado”. Digamos que seja “só
brincadeira”, por que eles não foram xingados de “ladrão”, “burro”,
“idiotas”? A gente busca elementos que estão de fora.
Sul21: No Brasil, os debates de maior repercussão que a gente
teve sobre racismo, nos últimos anos, estiveram ligados ao futebol. O
que faz com que ele consiga isso?
Gustavo: O futebol no Brasil é muito importante. Não
sei se deveria ser tanto, pra mim é, mas eu quero que as pessoas que
não dão bola para ele tenham direito de não achar isso. É a única
prática cultural em que o Brasil é o melhor do mundo, indiscutivelmente,
então tem esse tamanho e muito espaço de mídia. Tem muita televisão,
câmera, holofote, todo mundo grande olha para um estádio de futebol.
Mesmo assim, alguns podem achar que a gente começou a ter problemas de
racismo em 2014. Não é verdade, em 2014, a gente começou a dizer que não
poderia mais acontecer. Eu vou a estádio desde o final da década de
1980 e sempre aconteceu. Eu tendo a ser um otimista, posso imaginar que
essa série de violências que a gente tem visto agora, podem ser, nesse
primeiro momento, uma novidade positiva, porque a gente está vendo
práticas naturalizadas e dizendo que elas não podem continuar assim.
Sul21: Todas as questões que falamos até agora são de fora do
campo. O que dentro dele explica que o futebol tenha tudo isso
catalisado?
Gustavo: Tem sociólogos, que usam uma justificativa
que eu acho um pouco conservadora, que falam da simplicidade do jogo. É
um jogo fácil, você adapta ele de qualquer maneira, qualquer um pode
jogar, porque, por exemplo, bola no chão é só chutar, mesmo que você
seja muito ruim, é um movimento um pouco mais natural. Mas eu tenho uma
hipótese, um pouco diferente do que eu ouço majoritariamente, que o
futebol produz uma coisa que os outros esportes não produzem,que é o
torcedor de futebol. Isso me parece fundamental. Os diálogos sobre
futebol nivelam pessoas e aproximam. Essa figura do torcedor faz com que
ele procure o jogo, acompanhe seu time, ele é fiel, permanente.
Assistir alguns jogos do Grêmio é de um sofrimento estético…Eu não
esqueço um Gre-Nal, que foi 0 a 0, eu estava fora do país na época,
terminou o jogo e eu pensei “quem vai devolver essas duas horas que eu
perdi?”, porque foi horrível. A gente se mobiliza e não tem nenhuma
garantia e continuamos seguindo. O torcedor de futebol é uma figura sui
generis, não só entre esportes, mas inclusive, na vinculação com outros
elementos culturais, outros espetáculos. É o torcedor de futebol que dá a
permanência. O Renato Gaúcho, maior ídolo do Grêmio, somando os anos de
jogador e técnico deve ter uns dez anos de clube. O Grêmio tem 115 anos
de existência, eu tenho 35 anos de Grêmio, meu pai tem 65 anos de
Grêmio. Quem faz isso continuar é o torcedor. Acho que essa figura ajuda
a explicar porque o futebol é um fenômeno tão diferente.
Sul21: Ano passado, um apresentador de TV, Tiago Leifert, fez um texto na revista GQ
criticando os jogadores de futebol americano que se ajoelhavam durante o
Hino dos Estados Unidos em protestos contra Donald Trump, dizendo que
“evento esportivo não era lugar de manifestação política”. O que tu
achas disso?
Gustavo: Tiago Leifert faz entretenimento, não
jornalismo esportivo e não tem problema nenhum nisso. Só que tem uma
coisa que a gente aprende logo quando começa a se envolver com política.
A gente aprende que só não acredita que política existe aquele que está
confortável com a situação da forma como está. Quando o Tiago Leifert
diz isso, o texto dele é extremamente político, porque não há ambiente
sem política. Só que é uma política hegemônica, de uma cara que é
apresentador de entretenimento no maior canal de televisão do país, que
tem uma hegemonia que a gente nem sabe quanto nos custa, e como ele está
bem adaptado, tudo bem. Quem acredita de verdade que não existe
machismo? Homens. Quem acredita de verdade que não existe racismo?
Brancos. Quem acredita de verdade que não existe homofobia?
Heterossexuais. Como para eles é tudo tão naturalizado, eles são a
norma. Quero terminar otimista essa conversa, sempre se dizia que
futebol e política não se misturavam. Apesar de ela sempre ter estado
presente, sempre se disfarçava com essa frase. Quando a gente começa a
dizer que algo não está bom, é porque a gente está mexendo com o futebol
e eu não sei o que vai acontecer. Sendo parte dessa geração iludida com
a constante progressão do desenvolvimento, eu não posso mais ser
ingênuo, de achar que essas coisas vão ser sempre pra melhor. Acho que a
gente colocou uma bola no meio de campo e tem que jogar esse jogo.
Sul21: Alguns jogadores de futebol já se manifestam no campo
da política partidária. Ronaldo apoiou Aécio Neves (PSDB), Ronaldinho
Gaúcho declarou simpatia a Jair Bolsonaro (PSL) e se filou ao seu
partido. A Copa muda algo? Qual será a marca deixada por ela?
Gustavo: Acho que o resultado dentro de campo não. O professor Arlei Damo, da Antropologia da UFRGS, escreveu um texto, “Que venha a Copa”,
porque qual era o entendimento dele? Nós estamos vivendo um cenário de
polaridades muito pesadas no país, com interrupção de diálogo, onde a
gente está transformando pequenas diferenças em desigualdades
irreconciliáveis. A gente não está ouvindo, está só falando para os
mesmos, sem nenhuma possibilidade de conversa. Eu ainda acho que a
maioria das pessoas está em silêncio, que estaria disposta a conversar,
mas não encontra onde. A Copa do Mundo poderia ser boa nesse sentido,
porque a gente está um pouco extasiado e vamos ganhar 30 dias. Com a
Copa, a gente ganhou 30 dias mais perto da eleição, porque em algum
momento, eu temi que a gente não chegasse ao cenário eleitoral e agora
isso fica mais difícil de acontecer. Outra coisa, a Copa é uma diversão.
Os coxinhas e petralhas, amarelos e vermelhos, não podem nos roubar a
alegria. Vamos gritar gol sim e nos abraçar com as pessoas que a gente
costumava abraçar, porque daqui a pouco, nessa dicotomia política, a
gente não vai poder mais. Ser feliz também é um ato de resistência.
Tomara que a Copa do Mundo nos dê 15 dias de felicidade.
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