Teoria da isenção
Como certos filósofos que passam a vida tentam resolver questões
inconclusas desde Platão, eu, por excesso de ócio, decidi superar alguns
impasses e polêmicas da mídia. Quero que na minha lápide escrevam:
“Resolveu o problema da imparcialidade em jornalismo”. Claro que deixo
esse elogio para o túmulo por ser modesto e discreto. Não quero louros
em vida. Que venham as rosas da posteridade. Obrigado.
Durante muito tempo se sustentou que a obrigação do jornalista era
ser isento, imparcial, objetivo e neutro. Ninguém duvidava da
possibilidade cognitiva de se realizar tão nobres ideais. Depois, tudo
se inverteu. Tudo isso passou a ser considerado um mito. Há quem diga
que filme de ficção e documentário são iguais: recortes, seleções,
edições, enquadramentos, angulações, escolhas. Contradições pululam. A
esquerda é a primeira a declarar que a imparcialidade é impossível. Mas
volta e meia cobra imparcialidade da Veja e da Rede Globo. Teóricos
quebram a cabeça para mostrar as diferenças entre esses conceitos. O
leigo simplifica com razão: usa-os como sinônimos. Ser neutro,
imparcial, isento e objetivo significa não ser tendencioso.
O tendencioso distorce os fatos consciente ou inconscientemente por
fazer parte de uma tendência. Por ter lado. Eu acredito em
imparcialidade, isenção, objetividade e neutralidade. Defino
objetividade negativamente: faculdade de neutralizar a subjetividade.
Imparcial é quem não é parte. Como, em tese, um juiz. Não é parte, não
tem lado prévio, mas toma parte, ou seja, posiciona-se a cada vez
conforme os dados disponíveis, evidências, indícios, provas e situações
concretas. Avalia, julga, sentencia, escolhe. Se há um estupro provado,
condena-se o estuprador. Se há uma injustiça evidente, denuncia-se quem a
comete. Neutralidade é ponto de partida. A isenção é a disponibilidade
para a prática da independência.
Ser imparcial não é impossível intelectualmente falando. Mas, além de
difícil e de pouco praticado por quem deveria, é sempre pertinente? A
quem interessa isso? Diante de uma injustiça deve-se tomar parte ou
permanecer alheio? A esquerda considera imparcial quem diz o que ela
pensa. A direita tem por imparcial quem ataca a esquerda. Pode-se ter
lado e não ser tendencioso conscientemente. Basta que se pratique a
honestidade intelectual. Um jornalista de opinião obviamente não pode
ser parte, mas deve se posicionar. A partir de quê? Do seu livre
entendimento, da sua consciência. Se é pênalti contra o seu clube do
coração, deve dizer sem hesitar.
Independência implica ser capaz de frustrar todos os lados. No meio
da polêmica dominical sobre a soltura de Lula, disparei uma fórmula que
transbordava independência e provocação: “A direita prende sem provas. A
esquerda solta sem competência”. Não sou parte. Posso desagradar a
todos. Sempre consigo. Sou chamado de isento por quem concorda com
minhas posições. Sou rotulado de parcial por quem discorda de mim. Os
mesmos que afirmam a impossibilidade lógica da imparcialidade chamam de
isentão quem não se decide, ainda que momentaneamente, por uma parte.
Jornalista não é parte. Faz parte.
-----------------
* Jornalista. Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário PUCRS.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/07/11040/isencao-neutralidade-imparcialidade/
Nenhum comentário:
Postar um comentário