Nutro uma desconfiança profunda pela idolatria da vida como prosperidade eterna
A espiritualidade está na moda. Muita gente diz
que tem espiritualidade mas não tem religião. Com isso quer dizer que é
legal, não é materialista, mas nada tem a ver com as barbaridades
cometidas pelo cristianismo. Se tiver grana, será uma budista light.
Aquele tipo de budista que frequenta templo de fim de semana e paga R$
100 reais para lavar o chão a fim de sentir a dimensão espiritual do
trabalho físico.
Poderia lavar de graça o banheiro da própria casa, mas esse banheiro
não teria o mesmo valor do banheiro do mosteiro chique. Trata-se de um
day temple e não day spa.
Não vou entrar na questão técnica e histórica da relação entre espiritualidade e religião. Mas, sim, é possível uma pessoa cultivar uma busca de sentido na vida para além da banalidade das demandas e rotinas do cotidiano, estando ou não vinculada a alguma tradição religiosa.
O centro da busca é o reconhecimento de tensões nessa rotina que nos
fazem sentir um esvaziamento de significado desta mesma rotina, sem
necessariamente depender diretamente de conteúdos advindos das tradições
religiosas à mão.
Mas um fato é necessário reconhecer, antes de tudo: as formas mais consistentes de busca espiritual estão associadas a temas concretos da vida e não a ET, Jedis, Thor ou bruxinhas de fim de semana.
A espiritualidade nasce da percepção de mal-estar da condição humana e
da tentativa de lidar (ou superar esse mal-estar) e não apenas do
deslumbramento com a série “Vikings”. Essa busca se iniciou no alto
paleolítico quando o Sapiens começou a perceber que havia algo de
“errado” em sua condição (sofrimento, insegurança, morte, violência e
por aí vai).
Em termos contemporâneos, acho que três tópicos, entre outros
possíveis, se prestam a uma inquietação espiritual. Um diretamente
ligado ao mundo corporativo, mas que o transcende, outro ao avanço da
longevidade, e outro mais derivado do impacto do avanço da inteligência
artificial.
As grandes tradições espirituais sempre falaram de sofrimentos reais e não de modas culturais, como no caso que descrevi acima (day temple, Jedis, ET e semelhantes). Um dos temas contemporâneos mais avassaladores é a obrigação de ter sucesso e prosperar. Nesse contexto, repousar é justificado, apenas, se o repouso for causa de maior avanço.
A pessoa é chamada a ver a si mesma e a sua vida como um recurso a
ser explorado e transformado em ganho de alguma espécie. Formas variadas
de “coaching” apressados, assim como workshops de fim de semana
“ensinam” as pessoas que timidez é pecado, insegurança é “justamente”
punida com fracasso financeiro, recusa de escolher o que é “novo” é uma
nova forma de doença mental.
Nesse contexto de produtividade opressiva, formas falsas de
espiritualidade associadas ao mundo corporativo ou do trabalho crescem
como um discurso que daria ao imperativo do trabalhar 24 horas por dia
(24/7, como dizem os americanos) uma aura de movimento quântico em
direção ao sucesso eterno.
Por isso, qualquer espiritualidade contemporânea deve olhar de forma
desconfiada para essas tentativas de associar o sucesso ao universo
espiritual. Ou a ideia de que produtividade e eficácia implicam uma
melhor gestão do karma.
Se a espiritualidade toca em temas “negativos”, ou seja, nas
contradições que somos obrigados a enfrentar na vida, ela não poder ser
infantil como essas formas de idolatria do sucesso. Nutro uma
desconfiança profunda por quem, o tempo todo, vê a vida como uma
empreitada para a prosperidade.
Talvez uma das maiores formas de prosperidade seja a longevidade.
Produto de alto valor no mercado das utopias. Palestras de todos os
tipos vendem a longevidade como algo que será, um dia, vendido nas
prateleiras do free shop. A ideia é de que a morte será eliminada ou
adiada 500 anos.
Do ponto de vista espiritual, sendo a morte um dos temas que mais
despertam indagações, a (quase) eliminação dela, ou a transformação dela
em “opção”, traria elementos muito significativos para as inquietações
humanas. Por que optar por virar pó (morrer) quando você poderia viver
pra sempre? É bom mesmo estar consciente de si para a eternidade ou por
500 anos? Temo que não. A primeira reação minha seria uma profunda
melancolia e tédio.
Outro tópico avassalador é a entrada da inteligência artificial no
universo humano. Aqui a experiência mais assustadora será a da
humilhação cognitiva que vamos experimentar. A humilhação sempre foi um
alimento espiritual poderoso.
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