Marilia Fiorillo*
Vivemos na era da “pós-verdade”,
como bem definiu o Dicionário Oxford para 2016. A palavra foi eleita,
pois “denota circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos
influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à
crença pessoal”. O aceno de uma Nova Desordem Mundial se pauta pelo
avanço da extrema-direita, racismo, xenofobia, homofobia, novos
fascismos que precisam de uma pós-nomenclatura.
No novo caos, um triunfo, porém, já é irreversível: o do marketing da “dissonância cognitiva”
(termo criado por um professor da New School for Social Research de
Nova York, Leon Festinger), isto é, o recurso sistemático à negação de
evidências, para não frustrar as crenças. A cidadania pós-moderna
tornou-se uma estilização dos 3 macaquinhos chineses: não vejo, não
ouço…mas falo insensata e destemperadamente.
É a globalização da mentalidade tablóide, cuja ideologia principal é não ter qualquer ideologia, apenas a voragem da ignorância e do ressentimento.
A Nova Desordem Mundial gera não só ansiedade, mas uma perplexidade
teórica, um vácuo que os antigos conceitos da filosofia política parecem
não preencher. Seria a derrota final da utopia de um mundo mais justo e
igualitário, a ser substituída, a médio prazo, pela apatia
generalizada, após um interregno de convulsões?
Hoje, as utopias, socialismo ou liberalismo de face humana, estão
obsoletas. O socialismo sonhado, na prática, fracassou. O capitalismo
abandonou qualquer frivolidade de distributivismo, relegando o fator
humano ao esquecimento. Acabou-se a mística da esquerda, e o capitalismo
financeiro escancarou candidamente sua lógica perversa – para os 99%
que compõem o tal fator humano, claro.
Vai aqui um elenco de perguntas: não está na hora de substituir a
romântica noção de povo pela mais difícil e ambígua noção de massa?
Massas são protéicas e cambiantes. Nem é preciso citar a atual onda de
populismos nacionalistas de direita, na França, Europa do Leste, na
expansionista mãe Rússia, no império americano.
Relembremos a massa (ou a plebe?) que idolatrava o dominicano
Savonarola e o conduziu ao poder na Florença de 1494, para, quatro anos
depois, execrá-lo e levá-lo à fogueira. A massa fez com ele o que ele
havia feito com ela, ao criar um clima de terror, com patrulhas (milícias,se diria hoje) moralistas. Em sua missão de expurgar o vício (se diria, hoje, a corrupção),
Savonarola queimou obras de arte, livros (entre eles Boccaccio),
espelhos, cosméticos e até baralhos. Teve o mesmo destino destes
artefatos: a fogueira das vaidades. A opinião popular exaltou
Savonarola com a mesma presteza e intensidade com que o condenou. A
massa explode nas ruas com virulência, e, inexplicável e subitamente,
reflui.
Povo, massa, multidão: dessa incógnita tratou o autor búlgaro Elias Canneti, em seu Massa e Poder
– e cuja leitura nos auxiliaria a repensar quem representa o que, e o
que não representa nada, apenas um maremoto de fúria indiscriminada.
Vivemos a falência de vetustos conceitos, como foram concebidos.
Estão sob suspeita tanto a democracia representativa como a hoje
endeusada democracia direta – mas recordemos que na Atenas do século V o
ideal de democracia direta era praticado por uma elite ínfima, cerca de
10% da população, pois eram excluídos mulheres, estrangeiros, e
escravos. Igualmente sob suspeita estão a escatológica idéia da marcha
triunfante da história, ou de seu fim, ou a noção quase universal da
vantagem da separação de poderes, que muitos se perguntam se não deveria
ser renomeada conivência cordial dos poderosos. A tradição, ao menos a tradição de compreensão do mundo, foi derrotada. Resignação, destemor ou serenidade?
Uma sugestão seria repensar o conceito de justiça versus o
de lealdade, o que coloca em pauta o antigo dilema Razão X Sentimento.
Apenas para iniciar a discussão, tomemos duas acepções do Iluminismo: a
alemã, de Immanuel Kant, e a vertente escocesa, representada por David
Hume e Adam Smith em suas respectivas teorias do sentimento moral.
.
.
Talvez fosse preferível, pois, substituir a dicotomia entre Razão e Sentimento ela noção de moralidade rala versus moralidade caudalosa.
.
A clássica anedota sobre a deontologia kantiana é aquela sobre o imperativo categórico de jamais se mentir. Diriam os escoceses: mas, e se delinquentes (detentores ou não do monopólio do poder) baterem à sua porta e perguntarem se você está abrigando um fugitivo injustamente perseguido? Devemos nos guiar pelo imperativo universal ou pela previsão das consequências? O debate Deontologia X Consequencialismo (ou utilitarismo) é de longa data. Vale a intenção ou o resultado? O princípio intocável, a regra de ouro, ou o cálculo do melhor efeito, para o bem comum?
A clássica anedota sobre a deontologia kantiana é aquela sobre o imperativo categórico de jamais se mentir. Diriam os escoceses: mas, e se delinquentes (detentores ou não do monopólio do poder) baterem à sua porta e perguntarem se você está abrigando um fugitivo injustamente perseguido? Devemos nos guiar pelo imperativo universal ou pela previsão das consequências? O debate Deontologia X Consequencialismo (ou utilitarismo) é de longa data. Vale a intenção ou o resultado? O princípio intocável, a regra de ouro, ou o cálculo do melhor efeito, para o bem comum?
Vamos complicar a querela Kant-Hume convidando o filósofo
contemporâneo pragmatista Richard Rorty, falecido há menos de 10 anos.
Tomemos o ensaio de Rorty “Justiça como Lealdade Ampliada”. Ele
introduz uma nova aporia. Rorty nos lembra que há um pressuposto
negligenciado nesse dilema, que seria o conflito entre lealdades,
principalmente em situações limite. Exemplifica com uma família que
estocou alimentos após um holocausto nuclear. Eles dividirão a comida,
que só duraria três dias, com os vizinhos? Ou vão rechaçar os vizinhos
com armas, para garantir a sobrevivência dos filhos? Podemos expandir o
exemplo para a questão da pouca hospitalidade com refugiados, num
período de crise econômica e desemprego. Humanistas de carteirinha, no
país de destino dos migrantes, tendem a se tornar, repentinamente,
egoístas enraivecidos.
Fica delineado, então, que se trata menos de uma disputa entre
justiça e sentimentos, mas de uma escolha entre lealdades: com grupos
menores (o nosso círculo) ou com grupos maiores. Os kantianos
argumentariam que a justiça nasce da Razão, e a Lealdade, do sentimento –
e só a Razão gera obrigações incondicionais. Rorty, porém,
dialogando com vários autores, lança a incômoda hipótese de que a
moralidade surge não de um mandato do dever, mas de uma relação de confiança recíproca entre as pessoas, de laços mais ou menos estreitos.
A lei moral lamentavelmente está sujeita às contaminações de simpatias e
antipatias, idiossincrasias e veleidades. Em um mundo como o nosso, em
que a pluralidade de identidades resultou em conflito e sectarismo,
invocar uma Razão universal não mitiga a explosão de irracionalismos de
todo matiz. Haveria uma moralidade transcultural calcada na Razão? As
sociedades ocidentais estão com dificuldade para construí-la.
Tomemos, então, o conceito de empatia. Adam Smith, em sua Teoria dos Sentimentos Morais,
chamou isso de “sentimento de companheirismo”, uma habilidade em
derivar a compaixão (ou a alegria) da aptidão de imaginar-se na pele de
alguém diferente. Isso para o pior e o melhor: a empatia não é
exclusivamente piedade, mas também a capacidade de comemorar a
felicidade alheia. Provém de um impulso da imaginação, essa arte (não
obrigação) de colocar-se no lugar do outro. A ensaísta Susan Sontag
certa vez escreveu: “No centro de nossa vida moral e de nossa imaginação moral estão os grandes modelos de resistência, as grandes histórias daqueles que disseram Não”.
Talvez fosse preferível, pois, substituir a dicotomia entre Razão e Sentimento ela noção de moralidade rala versus moralidade caudalosa.
Isto é, o exercício de ampliação de nosso senso de justiça, e
solidariedade, para círculos cada vez mais largos, tornando-nos capazes
de nos espelhar não só no próximo, a família, o vizinho, a turma, a
cidade, o país. Isso significaria criar uma “comunidade de confiança”,
menos mesquinha e míope. Tal construção, porém, jamais será fruto de
arrazoados categóricos, mas nasce de um sentimento: a empatia.
Nesse sentido, a empatia, ou moralidade alargada, é infinitamente
superior à tolerância, pois tolerar sugere certa condescendência com o
outro, que se volatiliza prontamente em momentos de crise.
Suscitar a empatia e educar a Imaginação para essa moralidade
sentimental, esta lealdade alargada, talvez seja uma resposta para um
mundo, não perfeito, longe disso, mas menos cruel do que o atual.
------------* é professora de Filosofia Política da Escola de Comunicações e Artes da USP
Por Artigos
- Editorias:
Fonte: https://jornal.usp.br/artigos/tolerancia-ou-empatia/ 16/07/2018
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário