Parece existir uma lei universal
implícita, como alguns imaginavam ser a dialética hegeliano-marxista,
regendo os comportamentos extremos da humanidade. Podemos chamá-la
provisoriamente de Lei da Extrema Reversão (LER). Tudo precisa ter uma
sigla para fazer mais sentido. Pela LER cada coisa é relida pelo avesso
toda vez que o oposto se consagra. Como todo enunciado que se preze, o
da LER tem algo de abstrato enquanto exposição de princípio. Na prática,
é simples: quando um extremo se impõe, a sua negação fermenta até
neutralizá-lo. Não se deve confundir a LER com a novelesca ideia de que
para tudo há um troco. Uma sutileza as separa.
Nada em nossa cultura acadêmica e jornalística se sustenta sem uma
boa citação. A autoridade se expressa pelo nome do citado. O campo
jurídico cultua as autoridades até com certa ingenuidade. A autoridade
paira acima das leis. Umberto Eco detectou o princípio da LER ainda que
não a tenha constituído como ideia universal. Segundo ele, “num grupo em
que se difundisse a técnica da falsificação desagregadora, seria
restabelecida uma ética da verdade muito puritana. A maior parte (para
defender as bases biológicas do consenso) se tornaria fanática da
‘verdade’ e cortaria a língua até a quem mentisse pelo gosto de utilizar
uma figura de retórica. A utopia da subversão produziria a realidade da
reação”. Contra o falso, o excesso de verdade. Contra a retórica da
humilhação, o politicamente correto. O jogo se multiplica.
Seria possível falar, por exemplo, de LER em relação ao campo sexual.
Contra o assédio masculino, o fim da sedução. Essa proposição, porém,
dificilmente seria aceita e provocaria uma reação típica de reversão,
confirmando sua pertinência pela impertinência extrema. Ela seria
considerada machista e apontada como uma tentativa de relativizar a
violência masculina contra a mulher. Catherine Millet, a famosa
escritora francesa que entrevistei na última segunda-feira para o
Caderno de Sábado desta edição, assinou manifesto contra o “#MeToo” em
nome do direito de seduzir correndo o risco de “importunar” e de levar
um não que seja recebido como não e nada mais. Citar Catherine Millet
remete para a autoridade da citação. Mas não resolve a questão.
As citações nunca resolvem as questões. Não passam de jogos retóricos
de intimidação ou defesa. Usa quem pode, decodifica quem consegue,
reclama quem não faz parte do clube. É um jogo para iniciados. O juiz
Sérgio Moro já citou os ex-presidentes norte-americanos Lincoln e
Roosevelt, Batman e o Homem-Aranha, a Operação Mãos Limpas, Don Corleone
e juristas de vários países. O trabalho do juiz da Lava Jato é um caso
típico – um “case”, em inglês pesa mais – de LER. Contra o excesso de
recursos, um método expedito. Contra a impunidade por prescrição, a
punição imediata como prescrição.
No campo jurídico, durante muito tempo predominou a ideologia
positivista. Cabia julgar conforme a letra fria da lei. Disso resultava
quase sempre julgamento em favor dos poderosos. Ao longo da escravidão,
julgava-se em favor dos donos de escravo. Quem ajudasse um escravo a
fugir incorria nas penas da lei. Esse universo togado por evolução
sofreu um impacto da LER. Se a letra fria da lei engessava os
julgamentos e produzia injustiças que a sociedade não podia mais
admitir, abriu-se espaço para a hermenêutica e o juízo interpretativo
das leis. Uma mudança de paradigma de grau nove na escala Richter.
Façamos uma leitura mais frontal dessa inversão. Durante muito tempo,
progressistas, humanistas e esquerdistas, atributos normalmente
concentrados numa mesma pessoa por autoelogio, reclamaram mais
interpretação e menos aplicação literal das leis. Por óbvio, o campo
oposto privilegiava a literalidade da lei contra o subjetivismo e o uso
ideológico, o que era uma forma ideológica de objetivar a subjetividade
dos poderosos. Ultimamente, como todos sabemos, a LER reverteu a
reversão. A esquerda pede mais literalidade e a direita grita em defesa
da interpretação. Os antigos positivistas viraram hermeneutas. Os
interpretacionistas e ativistas jurídicos tornaram-se neopositivistas.
Como o neopositivismo também já foi corroído pela LER, fala-se em
pós-positivismo ou em perspectivismo pós-moderno.
O precipitado brada: “Incoerência”. O teórico pondera: efeito
necessário da LER. Contra a falsificação, uma verdade integral.
Realidade da reação. A cada época a sua necessidade de modulação. Os
mesmos que aplaudiram a decisão do STF a favor dos casamentos entre
pessoas do mesmo sexo, contrariando o texto constitucional, exigem
respeito à Constituição no que se refere à presunção de inocência. Estou
entre eles. Pode ser uma contradição. Pode ser uma modulação. Num caso,
a decisão parece estender direitos sem prejudicar terceiros, salvo nas
suas convicções ou preconceitos. No outro, restringe. A LER é assim. Põe
todos em contradição em busca de um novo parâmetro provisório. “I
YOOOO, SILVER! Avante!!! Vamos, Tonto”. C’est la vie.
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* Jornalista. Prof. Universitário. Escritor. Sociólogo.
Fonte:http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/07/11012/guerrilha-juridica-e-ideologica/
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