Lya Luft*
Não falo apenas no pão e circo do
velho Nero, que, diante da insatisfação dos explorados romanos, mandou
que lhes dessem mais pão e circo. Essa verdade abrange séculos, quem
sabe milênios. Gladiadores se mutilando, inocentes devorados vivos por
feras, sangue e entranhas, miséria grassando lá fora, tiranos loucos, e a
gente aplaudindo enquanto comia pão seco e torcia, berrava, aplaudia.
Nas nossas vidas pessoais, pode acontecer algo parecido, sem feras
sanguinárias nem tiranos loucos. Está tudo confuso, preocupante,
assustador, então vamos às compras, uma camiseta de R$ 10 ou uma bolsa
de vários milhares, uma ida ao shopping só pra olhar ou uma fugidinha
pra Miami ou Nova York. Pode ser uma amante, um namoradinho, uma balada,
um bom livro, um bom uísque, um bom papo com amigas ou amigos, um
passeio de carro vendo o rio e as nuvens, ou simplesmente uma tarde no
quarto chorando.
Mas, de preferência, uma das distrações acima,
porque chorar dá medo de não conseguir parar nunca mais, sobretudo se
for uma perda trágica que nos estraçalha apesar dos esforços e do tempo
amigo, que nem sempre cura (abranda). Então também pessoas têm seus dias
de pão e circo pra não desanimar, não enlouquecer, não fugir correndo,
não se matar.
Nestes tempos de Copa do Mundo, eu, que não
entendo de futebol, mas gosto e assisto, ouço comentar que o tempo pode
ter sido escolhido para acontecerem alguns golpes baixos enquanto
estamos distraídos torcendo ou secando. Alguém me diz: "Poxa vida, você
gostar de futebol?". Bem, sinto muito, mas sou gente. Gosto de seriados
como Criminal Minds, leio romances do gênero e, de momento, para
descarregar minha agressividade (em geral moderada) com a situação aqui
fora, entro no meu iPhone e releio o Ascensão e Queda do Terceiro Reich,
de William Shirer. Em inglês, pra não perder o costume e não exercer o
feio vício profissional de encontrar esquisitices na tradução (sim, eu
às vezes também leio no iPhone, levando comigo para toda parte um livrão
de mil e muitas páginas. Novos tempos, sem abdicar dos velhos hábitos).
Então, aqui, vejo futebol com Vicente, lembrando meu pai há
tantas décadas ouvindo futebol no rádio nas tardes de domingo, entretido
e fascinado, berrando a cada gol do seu time, enquanto minha mãe
rondava, mal-humorada, reclamando baixinho que domingos à tarde ela não
tinha marido.
Nestes dias difíceis que nos enchem de
preocupação, é bom entrar nessa do pão e circo? Por que não? Pular,
gritar, vestir a camiseta, botar chapéu ou óculos bizarros, vender a
alma para poder viajar para a Rússia, tudo isso nos alivia. Quem sabe a
gente tenha mais energia, mais lucidez, depois de um breve tempo
esquecendo a pobreza, as dívidas, o emprego ameaçado, a mulher
trabalhando em três turnos... a incerteza. Atualmente, nem bebo, nem
danço, nem viajo, nem visto camiseta, mas aqui e ali vejo jogos,
torcendo, sem entender nada das regras, mas encantada com as coisas
humanas: a violência de alguns, a solidariedade de outros, o desânimo, a
esperança, a glória, o abatimento, as manhas e tramas, e o marido de
vez em quando me iluminando com algum bem-vindo comentário (ou eu
ficaria demais nas nuvens).
Merecemos muito mais momentos bons e
leves no dia, na vida, sem circo nem espetáculo, sem inocentes
despedaçados enquanto nos distraímos com a arena.
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* Escritora.
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=1981344fab98be77a2359cbc6fc10e07 30/06/2018
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