Juremir Machado da Silva*
Lógica discursiva
No mundo do direito, ou da filosofia do
direito, duelam personagens que os mortais ignoram: Hans Kelsen X Carl
Schmitt, Luigi Ferrajoli X Elizabeth Anscombe, constitucionalistas e
supraconstitucionalistas, garantistas e consequencialistas, um universo
de possibilidades e de argumentos. Não fuja, leitor. Esqueça o Google.
Ou só o procure em caso de extrema necessidade. É tão excitante. Todos
podem estar certos e errados ao mesmo tempo. Como vivem no relativismo,
recorrem a autoridades absolutas por tradição.
O constitucionalista dá à corte suprema o papel de guardião da
Constituição. O supraconstitucionalista acredita que um “príncipe” deve
poder interpretá-la a seu bel-prazer ou em nome do espírito da nação. O
garantista aplica a lei escrita e só a interpreta quando vê lacunas. O
consequencialista interpreta lei conforme a consequência desejada. Os
seus seguidores brigam sem parar. Pode acontecer assim:
– Algo está errado no funcionamento do judiciário…
– Você diz isso por ignorância.
– Entendi a sua estratégia. Todos os seus argumentos serão de autoridade. Acontece que cem juristas dizem o que estou dizendo.
– No caso deles é por ideologia.
– Entendi o raciocínio. Uns discordam por ignorância e outros por ideologia. Só o seu pensamento é verdadeiro e não ideológico.
O ministro Carlos Marun quer a criação de uma corte constitucional no
Brasil para dirimir contendas entre o STF e a Constituição. Não seria
mais fácil o STF ser corte constitucional e deixar quase tudo que vem
fazendo excessivamente para o STJ? Nas brigas epistemológicas desse
mundo estonteante acontecem coisas assim:
– Deve-se aplicar a lei interpretando-a.
– Que lei autoriza a interpretar legislando?
– A independência dos poderes.
– Em que lei está prevista a independência nesse nível?
– É uma questão de interpretação.
– Nem tudo pode ser interpretação.
– Isso é uma interpretação.
– Quem disse que não pode haver lei sem espaço para interpretação?
– A interpretação.
É claro como água da fonte. Wittgenstein dizia que os problemas
filosóficos aparecem quando a linguagem sai de férias. É uma boa frase.
Deliciosamente enigmática. No Brasil não faltará quem diga que os
problemas jurídicos aparecem quando o juiz Sérgio Moro sai de férias.
Cada qual com a sua referência. Olympia de Gouges, figura da Revolução
Francesa, foi guilhotinada, honraria sem limitação de gênero. Eduardo
Galeano destaca o seu discurso de despedida: “Se nós, mulheres, estamos
capacitadas para subir até a guilhotina, por que não podemos subir até
as tribunas públicas”. A resposta foi cortante. Não havia jurisprudência
favorável a tal pleito nem interpretação da lei.
No Brasil, um dia, revoluto, José Bonifácio de Andrade e Silva
escreveu: “Riquezas e mais riquezas gritam os nossos pseudoestadistas,
os nossos compradores e vendedores de carne humana; os nossos sabujos
eclesiásticos; os nossos magistrados, se é que se pode dar um tão
honroso título a almas, pela maior parte, venais, que só empunham a vara
da Justiça para oprimir desgraçados, que não podem satisfazer à cobiça,
ou melhorar a sua sorte”.
A justiça então podia ser injusta.
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* Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/07/11046/justica-ideologia-e-narrativa/
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