Éramos jovens. As nossas preocupações
giravam em torno de questões simples como as estações do ano: saber se
teríamos dinheiro para o Restaurante Universitário ao meio-dia, decidir
quem era mais bonita, Anete ou Carmem, mudar o mundo em discussões no
bar do Maza e escolher um lado com argumentos extremos, o de Jean-Paul
Sartre ou de Albert Camus. Sim, no começo dos anos 1980, na faculdade de
História, andávamos com livros dos existencialistas franceses embaixo
dos braços e fazíamos longos debates – ou seriam embates? – sobre o que
líamos:
– Não tem nem graça, ora essa.
– O que não tem nem graça, tchê?
– A diferença entre Camus e Sartre.
– Ah, vai me dizer que Camus é melhor?
– Vou mesmo. Dá de relho no Sartre.
– Não vai querer me convencer que “O Estrangeiro” é melhor que “A
Náusea”, vai? Esse Camus precisaria ter comido muito feijão na vida para
fazer uma obra-prima como essa do Sartre. Vai por mim, cara.
Como era bom ter tantas certezas apesar do pouco, ou nenhum, dinheiro
no bolso e da falta de pressa para arranjar um emprego. Tínhamos a
ferocidade da quase adolescência, a liberdade dos que nada têm a perder,
a sensação de eternidade dos vinte anos e o desconhecimento dos
intermediários da arte que permite a tomada de posição sem entraves.
Ricardo, nosso amigo que infelizmente partiu cedo desta para talvez
alguma outra, ficava horas em silêncio tomando seu martelinho de cachaça
com limão, que chamávamos de pingado, ouvindo as discussões. De
repente, soltava um grito, um urro tremendo:
– Eu odeio Sartre.
Ficávamos atônitos por um segundo. Sabíamos o que viria, mas ainda
assim sentíamos o choque. Como podia ser tão atrevido? Como se permitia
soltar tamanha blasfêmia? O segundo grito era terrível:
– Eu odeio Camus.
Ricardo amava Henry Miller, Charles Bukowski e Robert M. Pirsig. “Zen
e a arte da manutenção de motocicletas” era talvez o seu livro
predileto. Às vezes, acordo no meio da noite a ainda me pergunto:
– Ricardo odiava Sartre e Camus ou apenas nos provocava?
Uma tarde de verão regada à cerveja, o que significava fartura de
meios obtido nalguma viagem ao interior ou generosidade de algum tio,
subi na mesa, com o Maza, o dono do bar, mergulhado na sua banheira
instalada no pátio, à sombra de uma árvore, e recitei:
– Ei, rapaziada, segurem esta se for possível: “Algo me aconteceu,
não posso continuar duvidando. Veio como uma doença, não como uma
certeza ordinária nem como uma evidência. Instalou-se pouco a pouco, eu
me senti estranho, algo incomodado, nada mais…”
– Isso me dá náusea – berrou Ricardo.
Maza tapou a cara com o chapéu para não ter de impor a ordem. Ricardo foi até ele, tirou-lhe a cobertura do rosto e perguntou:
– Sartre ou Camus?
O calejado dono do bar saiu-se da melhor maneira possível da enrascada. Deu a resposta que até hoje me faz rir de felicidade:
– Cerveja de graça para a gurizada.
A gente lia. Nem sempre o que os professores pediam. Éramos
existencialistas atrasados e tropicais. Houve quem virasse, certa época,
“dark”, uma tribo que andava de preto no Bom Fim e fazia ar blasé.
Cheguei a pensar nessa conversão, mas não tinha roupa preta nem dinheiro
para comprar. Numa sexta-feira à noite, no Maza, fizemos uma espécie de
seminário sobre Sartre e Camus. Lia-se um trecho de “A Náusea” e outro
de “O Estrangeiro”. Em seguida, quem quisesse explicava e defendia as
qualidades de um dos fragmentos e atacava o outro. Foi um dos melhores
debates da minha vida. As regras eram flexíveis. Eu defendi Camus. Havia
um viés não literário em nossa divisão: os marxistas ficavam com
Sartre; os anarquistas, com Camus.
Quando penso nisso, sou tomado pela nostalgia. Ricardo poderia ter
sido um grande escritor. Foi, entre nós, o mais existencialista e o mais
livre. Só tinha compromisso com a sua inteligência. Sempre o imaginei
escrevendo romances com algo de Camus, Sartre, Miller, Bukowski e
Pirsig. Um existencialismo desabusado, safado, sexual, desbocado,
irreverente, histórias de um anarco-marxista em busca de um porto onde
atracar para beber mais uma cerveja e pegar alguém para uma noite a ser
vivida como se fosse a última. “A Náusea”, de Sartre, foi publicada há
80 anos. Será que o livro ainda é lido nos bares?
Eu me lembro com saudades do que fomos e nunca mais seremos pois
entramos na idade da razão. Será que um guri de cabelos compridos sobe
nalguma mesa e grita: “Cai a tarde, acendem-se, na cidade, as primeiras
luzes. Santo Deus! Como a cidade parece natural, apesar de todas as suas
geometrias, como parece prostrada pela tardinha! É tão… tão evidente,
daqui! Serei acaso o único a percebê-lo? Não haverá em mais parte
nenhuma outra Cassandra, no cume dum outeiro, olhando para uma cidade a
seus pés, sumida ao fundo da natureza? De resto, que me importa? Que
poderia eu dizer-lhe? O meu corpo, muito brandamente, vira-se para
leste, oscila um pouco, e põe-se a caminho”.
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* Sociólogo. Jornalista. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/07/11029/sartre-e-camus-na-mesa-de-bar/
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