O escritor britânico Kazuo Ishiguro em coletiva de imprensa em Londres
após ganhar o prêmio Nobel, em 2017
-
Autor, que foi premiado no ano passado, também revisita seus passos iniciais na literatura
“Minha Noite no Século Vinte e Outros Pequenos Avanços” é uma
edição curta com o discurso de aceitação do Prêmio Nobel feito por Kazuo
Ishiguro, em dezembro do ano passado.
Nessa palestra, o autor fala um pouco sobre o início de sua carreira e
sobre os momentos de revelação que primeiro fizeram dele um escritor e,
posteriormente, ensejaram mudanças em seu trabalho.
O livro funciona como uma pequena autobiografia literária. Nela,
vemos um japonês cabeludo de 24 anos, recém frustrado em suas ambições
de se tornar estrela do rock, se enclausurar em um sótão alugado
tentando escrever algo.
O autor trata de sua condição de imigrante na Inglaterra e de ter
crescido em um país que parece muito menos cosmopolita do que costumamos
imaginar, com poucos não-britânicos, uma imensa ignorância em relação à
cultura estrangeira canônica e uma literatura que ainda não havia
digerido a Crise de Suez e a perda de sua centralidade imperial.
São especialmente interessantes os momentos em que fala das
influências que sofreu. A canção “Ruby’s Arms”, de Tom Waits, sobre um
mendigo durão mas que em determinado momento confessa que está com o
coração partido, teria feito com que Ishiguro decidisse que em algum
momento de “Os Vestígios do Dia” a armadura de seu protagonista
precisasse rachar, permitindo que “um desejo vasto e trágico fosse
vislumbrado”.
Certa noite em 2001, enquanto assistia a uma comédia de Howard Hawks,
outra pequena revelação teria gerado um passo adiante em seu trabalho.
O filme era “Suprema Conquista” (Twentieth Century no original, daí o
título do livro), e Ishiguro percebeu que, embora os personagens fossem
complexos no sentido de que conseguiam nos surpreender de forma
convincente, os relacionamentos nos quais eles estavam inseridos eram
planos.
A partir daí, Ishiguro resolveu cuidar dos relacionamentos e deixar
que os personagens cuidassem de si. O resultado teria sido o triângulo
formado pelos protagonistas de “Não Me Abandone Jamais”.
Uma curiosidade é que o livro, assim como o site oficial do Nobel,
cortou a parte inicial do discurso do escritor, na qual ele fala sobre a
porta da sala de cerimônia da sede da Academia Sueca.
Ishiguro diz que aquelas portas só são abertas duas vezes ao ano: uma
quando o secretário da Academia anuncia o vencedor. Outra, quando o
ganhador da vez entra para dar seu discurso.
“Me senti muito honrado em ser uma das únicas duas pessoas que
passarão por essa porta neste ano. Mas agora estou pensando que, se eu
tentar sair daqui pelo mesmo lugar, encontrarei as portas trancadas. Eu
não sei como sair daqui”.
Trata-se de uma parábola e de piada. Alguns viram aí uma ansiedade em
relação a como o Nobel enclausura um escritor na reputação com a qual
lhe agracia. Outros estabeleceram relação com o conto “Diante da Lei”,
de Kafka. Muitos viram no corte da Academia a censura a uma crítica
velada.
Agora que estamos sem um laureado de 2018, a parábola de Ishiguro
fica como uma predição de seu enclausuramento no posto. No fim, o corte
pode ter sido apenas um pedido do autor, mas, seja como for, vale saber
que antes do começo havia um outro começo.
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Reportagem por Juliana Cunha - São Paulo
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/07/em-discurso-kazuo-ishiguro-ironiza-clausura-no-premio-nobel.shtml
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