Noam Chomsky - Foto de Andrew Rusk/flickr
Bufão e desastrado,
presidente é apenas um sintoma. Poder geopolítico de Washington declina,
sistema político está em frangalhos e democratas investem
em tola
perseguição aos russos…
Entrevista de Chomsky a C.J. Polychroniou,
Truthout.
3 de Julho, 2018 -
Nesta entrevista exclusiva à Truthout, o intelectual e linguista mundialmente renomado Noam Chomsky analisa alguns dos últimos acontecimentos nos EUA e suas consequências para a democracia e a ordem mundial.
Gostaria de começar perguntando qual é a sua leitura do que
aconteceu no encontro entre Trump e Kim Jong-Un, em Singapura, e o modo
como esse evento foi coberto pelos media dos EUA
Faz lembrar Sherlock Holmes e o cachorro que não latia. O importante
foi o que não aconteceu. Ao contrário de seus antecessores, Trump não
minou as perspetivas de avançar. Especificamente, não interrompeu o
processo iniciado pelas duas Coreias em sua histórica Declaração de 27
de abril [Panmunjom], na qual elas “afirmaram o princípio de
determinação do destino da nação coreana conforme seu próprio acordo”
(repito: conforme seu próprio acordo), e pela primeira vez apresentaram
um programa detalhado sobre como proceder. Trump tem um crédito por não
minar esses esforços, e na verdade ele fez um movimento para
facilitá-los ao cancelar as manobras militares EUA-Coreia do Sul, as
quais, como disse ele com razão, são “muito provocadoras”. Nós com
certeza não toleraríamos nada semelhante em nossas fronteiras – e em
lugar algum do planeta – mesmo que eles não fossem feitos por uma
superpotência que há não muito tempo tivesse devastado completamente o
nosso país com os pretextos mais frágeis, depois da guerra já ter
efetivamente terminado, orgulhando-se dos grandes crimes de guerra que
cometeu, como o bombardeio de grandes barragens, quando não havia mais
nada para bombardear.
Além do mérito de deixar as coisas prosseguirem, que não foi pequeno,
nenhuma “habilidade diplomática” esteve envolvida no triunfo de Trump. A
cobertura foi bastante instrutiva, em parte por causa dos esforços do
Partido Democratas, para atacar Trump pela direita.
Depois de meses de retórica dura contra as práticas comerciais chinesas, Trump decidiu impor tarifas de 50 mil milhões
de dólares nas importações da China, levando Pequim a declarar que os
EUA embarcaram numa guerra comercial e a anunciar que fará uma
retaliação contra as importações norte-americanas. Primeiro, não é
verdade que a China está hoje meramente praticando o mesmo tipo de
políticas mercantis que os EUA e a Grã-Bretanha praticaram no passado,
no seu caminho para a ascendência global? Segundo, há expectativa de que
mirar nas tarifas terá algum impacto na economia chinesa ou no tamanho
do défice comercial dos EUA? Finalmente, se uma nova era de protecionismo está para começar, quais poderiam ser as consequências desse facto para o reino do neoliberalismo global?
Quanto às políticas económicas da China, sim, elas são semelhantes
àquelas que foram usadas pelas sociedades desenvolvidas em geral, a
começar pela Grã-Bretanha e depois por sua ex-colónia norte-americana.
Semelhante, porém mais limitada. A China não tem disponíveis os meios de
seus predecessores. A Grã-Bretanha roubou tecnologia superior à sua da
Índia, Países Baixos, Irlanda e, por força de severo protecionismo,
minou a economia indiana - então, a mais avançada do mundo, juntamente
com a da China. Os Estados Unidos, sob o sistema hamiltoniano (link is external),
recorreram a altas tarifas para barrar os produtos britânicos, e também
apropriaram-se de tecnologia britânica de formas proibidas pelo atual
sistema de comércio global liderado pelos EUA. O historiador de economia
Paul Bairoch descreve os EUA como “o país-mãe e bastião do
protecionismo” nos anos 1920 - bem depois de se tornarem, de longe, o
país mais rico do mundo.
A prática é em geral chamada “chutar a escada” pelos historiadores de
economia. Primeiro, os países usam ceras práticas para desenvolver-se;
depois, impedem que os outros façam o mesmo.
(…)
Como fez, antes deles, a Grã-Bretanha, os EUA passaram a reivindicar
“livre comércio”, mais tarde, quando observaram que a tendência natural
era tornarem-se predominantes. Depois da Segunda Guerra Mundial, quando
os EUA tinham um poder incomparável, eles promoveram a “ordem mundial
liberal”, a qual tem sido de enorme vantagem para o sistema corporativo
dos EUA, que agora possui cerca de metade da economia global – um
sucesso político espantoso.
De novo seguindo o modelo britânico, os EUA firmaram seu compromisso
com o “livre comércio” em favor do poder privado doméstico. O “livre
comércio” dominado pela Grã-Bretanha manteve a Índia como um protetorado
em grande parte fechado. Os sistema dominado pelos EUA impõe um
mecanismo de patentes radical (“propriedade intelectual”), que
proporciona um poder virtualmente monopolista às maiores empresas
norte-americanas. O governo dos EUA fornece também enormes subsídios a
indústrias de energia, ao agronegócio e a instituições financeiras.
Embora os EUA reclamem da política industrial chinesa, foi crucial para a
indústria moderna de alta tecnologia contar com pesquisa e
desenvolvimento feitos com subsídios públicos, a tal ponto que a
economia pode ser considerada como um sistema de subsídios públicos e
lucros privados. E há muitos outros mecanismos para subsidiar a
indústria. As compras governamentais, por exemplo, têm se mostrado
poderosas. Na verdade, só o enorme sistema militar, através de
aquisições, oferece um gigantesco subsídio estatal à indústria. Esses
comentários apenas tocam a superfície do problema.
(…)
O governo Trump está agindo muito rápido para reprimir a
imigração não autorizada no país, ao separar crianças imigrantes de seus
pais. Mais de duas mil crianças viveram este drama nas últimas sete
semanas, e o Procurador Geral Jeff Sessions tentou justificar esta
política citando um verso da Bíblia. O que se pode dizer de uma
sociedade ocidental avançada em que a religião continua a banir a razão
na construção de políticas e atitudes públicas? E não é verdade que os
nazis, embora não fossem crentes, também usaram o cristianismo para
justificar seus atos criminosos e imorais?
A política migratória dos EUA, sempre grotesca, desceu a níveis tão
revoltantes que até mesmo muitos daqueles que promovem e exploram a
xenofobia estão correndo para se proteger - como Trump, que está
tentando desesperadamente culpar os democratas por ela, e a
primeira-dama, que está apelando para que “ambos os lados” se unam para
acabar com a obscenidade. Não deveríamos, contudo, negligenciar o facto
de que a Europa está rastejando na mesma sarjeta.
Pode-se citar as escrituras para quase qualquer coisa que se queira.
Sabe-se, sem dúvida, que “toda a lei” se baseia em dois mandamentos:
amar a Deus e “amar ao próximo como a si mesmo”. Mas esse não é o
pensamento apropriado à ocasião. É verdade, contudo, que, desde que os
puritanos desembarcaram, os EUA são únicos, entre as sociedades
desenvolvidas, no papel desempenhado pela religião na vida social.
Embora esteja claro que os EUA estão a caminho de se tornar uma nação pária, os democratas continuam a concentrar a sua
atenção principalmente no suposto conluio de Trump com a Rússia e
comportamento antiético. Ao mesmo tempo, tentam ultrapassar o presidente
na agenda chauvinista, adotando novas restrições para as eleições de
2020 de modo a sabotar o apoio a Bernie Sanders. Diante disso, como você
descreveria a natureza da política contemporânea dos EUA?
Assim como na Europa, nos Estados Unidos as políticas de centro, que
predominam há muito, estão em decadência. As razões não são obscuras. As
pessoas que enfrentaram os rigores do assalto neoliberal – austeridade,
na recente versão europeia – percebem que as instituições estão a
trabalhar para poucos, não para si. Nos EUA, as pessoas não precisam ler
ciência política académica para saber que uma grande maioria, aqueles
que não estão próximos do alto da pirâmide de rendimento, estão
efetivamente marginalizados, no sentido de que seus próprios
representantes prestam pouca atenção às suas opiniões, dando ouvidos, ao
contrário, às vozes dos ricos, à classe dos doadores. Na Europa,
qualquer um pode ver que as decisões básicas são tomadas pela não eleita
Troika, em Bruxelas, com os bancos do Norte espreitando por cima de seus ombros.
Nos EUA, há muito tempo o respeito pelo Congresso está num só dígito.
Nas recentes primárias republicanas, quando os candidatos emergiram da
base, o establishment conseguiu derrotá-los e nomear o seu
próprio candidato. Em 2016, isso falhou pela primeira vez. É verdade que
não escapa muito da norma um bilionário com enorme apoio dos media e
fundos de campanha de quase mil milhões de dólares vencer uma eleição,
mas Trump dificilmente seria a escolha das elites republicanas. O
resultado mais espetacular dessas eleições não foi o fenómeno Trump.
Foi, sim, o extraordinário sucesso de Bernie Sanders, rompendo
drasticamente com a história política dos EUA. Sem o apoio das grandes
empresas ou dos media, Sanders bem poderia ter vencido a nomeação
democrata, não fosse as maquinações dos dirigentes do partido de
Obama-Clinton. Processos similares são visíveis nas recentes eleições
europeias.
Goste-se ou não, Trump está a ir bastante bem. Tem o apoio de 83% dos
republicanos, algo sem precedentes a não ser em raros momentos.
Quaisquer que sejam os seus sentimentos, os republicanos não ousam
contrariá-lo abertamente. O seu apoio geral de aproximadamente 40% não
está longe da norma, mais ou menos como o de Obama no seu primeiro
mandato. Ele tem sido pródigo em presentear o mundo dos negócios e os
super-ricos, o autêntico eleitorado republicano (a liderança democrata
não fica muito atrás). Jogou migalhas suficientes para manter os
evangélicos felizes e tocou os acordes certos para os partidários do
supremacismo branco. Até agora tem conseguido convencer os mineiros do
carvão e os trabalhadores do aço de que é um deles. Na verdade, o seu
apoio entre trabalhadores sindicalizados aumentou para 51%.
Quase não há dúvidas de que Trump não dá a mínima importância ao
destino do país ou do mundo. “O que importa sou eu”. Isso fica
suficientemente claro pela sua atitude em relação ao aquecimento global.
Ele está perfeitamente consciente da terrível ameaça – às suas
propriedades. O seu pedido de um paredão para proteger o seu campo de
golfe irlandês baseia-se explicitamente na ameaça do aquecimento global.
Mas a busca pelo poder o impele a conduzir a corrida à destruição,
bastante feliz, como fica evidente nas suas aparições. O mesmo acontece
com outras ameaças sérias, embora menores, entre elas a de que o país
possa ficar isolado, desprezado, decadente – com dívidas a pagar que não
serão mais de sua conta.
Os democratas estão agora divididos entre uma base popular de maioria
social-democrata e uma liderança dos Novos Democratas, que cede à
classe dos doadores. Sob Obama, o partido foi reduzido a ruínas nos
níveis local e estadual, uma questão particularmente séria porque as
eleições de 2020 determinarão o redistritamento, oferecendo oportunidade
ainda além da escandalosa situação de hoje para manipulações.
A falência da elite democrata é bem ilustrada pela obsessão com a
suposta intromissão russa em nossas sagradas eleições. Qualquer que
tenha sido - aparentemente muito pequena -, ela não pode ser comparada à
“intromissão” dos fundos de campanha, que determinam os resultados
eleitorais amplamente, de modo tão extenso quanto demonstraram as
pesquisas, particularmente o cuidadoso trabalho de Thomas Ferguson – que
ele e seus colegas estenderam agora para as eleições de 2016. Como
aponta Ferguson, quando as elites republicanas se deram conta de que ia
dar Trump ou Hillary, elas responderam com uma enorme onda de dinheiro
de última hora, o que não só levou Hillary a cair no fim de outubro como
teve também o mesmo efeito nos candidatos democratas para o Senado,
numa “manobra de bloqueio”, virtualmente. É “estranho”, observa
Ferguson, que o ex-diretor do FBI James Comey ou os russos “pudessem ser
responsabilizados por ambos os colapsos” nos estágios finais da
campanha: “Pela primeira vez em toda a história dos Estados Unidos, o
resultado partidário das eleições para o Senado coincidiu perfeitamente
com os resultados da votação presidencial em todos os estados.” O
resultado está exatamente conforme a bem fundamentada “teoria do
investimento da competição partidária” de Ferguson.
Mas factos e lógica pouco importam. Os democratas estão empenhados em
vingar-se pela derrota de 2016, tendo executado uma campanha tão podre
que uma vitória que parecia “certa” escorreu entre os dedos.
Evidentemente, o implacável ataque de Trump contra o bem comum é de
interesse secundário, ao menos para a elite do partido.
Às vezes observa-se que os EUA não somente se intrometem, com
regularidade, em eleições estrangeiras, inclusive russas, como também
agem para subverter, e às vezes derrubar governos de que não gostam. Não
faltam até agora consequências terríveis, da América Central ao Médio
Oriente. A Guatemala tem sido uma história de horror desde que o golpe
apoiado pelos EUA derrubou um governo reformista eleito em 1954. Gaza,
mergulhada na miséria, pode tornar-se inviável para viver em 2020, prevê
a ONU - e não pela mão de Deus. Em 2006, os palestinianos cometeram um
crime grave: promoveram as primeiras eleições livres no mundo árabe, e
fizeram a escolha “errada”, entregando o poder ao Hamas. Israel reagiu
com a escalada da violência e um cerco brutal. Os EUA retrocederam a uma
operação de procedimentos padrão e prepararam um golpe militar,
programado para derrubar o Hamas. Em punição por mais este crime,
aumentou muito a tortura de Gaza perpetrada por Israel-EUA, não apenas
pelo estrangulamento como também pelos assassinatos regulares e invasões
destruidoras feitas por Israel com o apoio dos EUA, sob pretextos que
não resistem a qualquer exame. Eleições com resultado errado não podem
obviamente ser toleradas sob nossa política de “promoção da democracia”.
Nas recentes eleições europeias houve muita preocupação com a
possível intromissão russa. Isso foi particularmente verdadeiro nas
eleições alemãs de 2017, quando o partido de extrema direita Alternative
für Deutschland (AfD) se saiu surpreendentemente bem, ao conquistar,
pela primeira vez na História 94 assentos no Parlamento (Bundestag).
Pode-se imaginar facilmente a reação, no caso de se descobrir
intromissão russa por trás desses resultados assustadores. Ocorre que
foi, sim, descoberta intromissão estrangeira, mas não da Rússia. A AfD
contratou uma empresa de media texana (Harris Media), conhecida pelo
apoio a candidatos nacionalistas de direita (Trump, Le Pen, Netanyahu). A
empresa está entre as que cooperam com o escritório de Berlim do
Facebook, oferecendo informação detalhada sobre eleitores potenciais
para uso em microabordagem daqueles que poderiam ser recetivos à
mensagem da AfD. Pode ter funcionado. A história parece ter sido
ignorada fora da imprensa económica.
Se o Partido Democrata não puder superar os seus profundos problemas
internos e a lenta expansão da economia sob os governos Obama e Trump
continuar sem interrupção ou desastre, uma bola de demolição republicana
pode estar balançando as fundações de uma sociedade decente, e as
perspetivas de sobrevivência, por um longo tempo.
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Entrevista de Noam Chomsky a C.J. Polychroniou, publicada no Truthout (link is external). Tradução de Inês Castilho para Outras Palavras (link is external).
Fonte: https://www.esquerda.net/artigo/chomsky-ve-decadencia-dos-eua-alem-de-trump/55995
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