Fernando Abrucio*
A
combinação entre liberalismo e democracia foi a principal chave do sucesso
político e social dos países que mais se desenvolveram entre os séculos XIX e
XX. Não foi um casamento fácil. Houve muitos conflitos e contradições entre
eles e o caminho de aproximação desse par sempre foi visto com desconfiança por
pensadores e atores políticos. Mas, como notou o filósofo Norberto Bobbio,
todos os regimes democráticos só sobrevivem se incorporam ideias liberais, bem
como somente é possível a existência de um modelo liberal em sociedades de
massa caso haja a incorporação de todos os cidadãos no processo político. Por
um tempo, a combinação deu certo, mas essa união hoje está em crise.
Para entender
o significado e as consequências desse problema, é fundamental começar
definindo os conceitos. Fala-se aqui de liberalismo especialmente no seu
sentido político, que pode ser resumido como um ideário defensor das liberdades
individuais e da limitação do poder político. Suas origens estão nas Revoluções
Inglesas do século 18 e no pensamento dos pais fundadores dos Estados Unidos. O
modelo liberal estava ancorado na necessidade de se garantir direitos
fundamentais de liberdade, algo que apenas poderia ser obtido com a defesa do
pluralismo e a separação clara das esferas do Estado e da sociedade.
O liberalismo político também se alicerça numa proposta institucional, baseada na separação e controle mútuo entre os Poderes. Evitar que haja a concentração de poder em qualquer tipo de autoridade, seja eleita ou não, foi uma preocupação central dos liberais, particularmente de James Madison, inspirador da estrutura institucional americana. Todas as vezes em que se concentrou demais a força política em uma instituição ou, pior, num líder político, caminhou-se rumo ao autoritarismo. Esse é o fim da liberdade.
A democracia
moderna tem como base a expansão da igualdade política a todos os cidadãos.
Isso significou, historicamente, o direito de criar organizações políticas e,
sobretudo, de votar e ser votado. Hoje essa prerrogativa parece banal, a ponto
de haver uma disseminação da crença de que a participação política tem pouco
efeito sobre as grandes decisões da coletividade. Por isso, é preciso lembrar,
constantemente, a batalha que foi garantir o voto aos que não tinham renda, às
mulheres, a minorias políticas como os negros americanos e, para lembrar do
caso brasileiro, para os analfabetos - cujo número só começou a decrescer como
porcentagem da população quando puderam votar para pleitear mais educação a
todos.
O sentido
do ideário democrático moderno, ao contrário de seu funcionamento no mundo
antigo, sempre foi ampliar a igualdade. Lógico que a participação política mais
igualitária não é suficiente para garantir a maior equidade entre os cidadãos,
porém, ela é uma condição sine qua non. Grosso modo, a trilha histórica dos
países que mantiveram a democracia foi a seguinte: quanto mais gente votava,
mais direitos eram garantidos à coletividade. Assim, a igualdade da esfera
política pôde ser, em alguma medida, transferida para o plano das relações
sociais e econômicas.
Nem
sempre o controle do poder se casa com a expressão da maioria da população por
meio do voto. Há casos de líderes políticos que chegaram ao poder com o apoio
do povo para depois reduzir sua participação. O fato é que se os governantes
tiverem seu poder limitado ao longo do tempo, há mais chances de a população
poder votar continuamente. No sentido inverso, é muito difícil garantir a
liberdade quando as desigualdades constituem a base do contrato social.
Pensadores liberais como John Rawls e Amartya Sem perceberam como a existência
de pontos de partida diferentes entre os cidadãos inviabiliza a liberdade para
todos.
Foi no pós-Segunda Guerra, após o desastre dos regimes totalitários, que mais países começaram a conciliar melhor o liberalismo com a democracia. Não foi um caminho suave e sequer linear, pois o autoritarismo continuou forte em várias regiões do mundo, como na América Latina e suas ditaduras, geralmente ancoradas nos militares. Mas a partir do final da década de 1970 até o início da década de 1990, uma nova realidade começou a se constituir, com o surgimento de um número inédito de regimes democráticos. Neles, não só o povo começou a participar continuamente, como também o império da lei e os controles dos governantes ganharam maior relevância. Parecia que liberdade e igualdade se tornariam um casal perfeito para a grande maioria da humanidade.
Foi no pós-Segunda Guerra, após o desastre dos regimes totalitários, que mais países começaram a conciliar melhor o liberalismo com a democracia. Não foi um caminho suave e sequer linear, pois o autoritarismo continuou forte em várias regiões do mundo, como na América Latina e suas ditaduras, geralmente ancoradas nos militares. Mas a partir do final da década de 1970 até o início da década de 1990, uma nova realidade começou a se constituir, com o surgimento de um número inédito de regimes democráticos. Neles, não só o povo começou a participar continuamente, como também o império da lei e os controles dos governantes ganharam maior relevância. Parecia que liberdade e igualdade se tornariam um casal perfeito para a grande maioria da humanidade.
Num
processo que se iniciou na década passada e se prolonga até os dias de hoje,
vários eventos revelam que a união entre liberalismo e democracia não vai bem
em diversas partes do mundo. E não se trata aqui de citar nações que
continuaram mantendo ditaduras de longa duração como Coreia do Norte e Cuba.
Esse tipo de arranjo político não é o inspirador da crise atual. Em nome de um
pretenso nacionalismo, da ampliação populista do poder ou de uma garantia da
liberdade sem que o povo seja convidado para a festa, ideais liberais e
democráticos começaram a se estranhar.
É um
fenômeno que cresce paulatinamente e que abarca lugares estratégicos do mundo.
A meteórica ascensão econômica e geopolítica da China no final do século
passado já era o primeiro sinal de que o casamento entre liberalismo e
democracia não se tornaria tão cedo um valor universal. Como a gigante nação
chinesa continuará a expandir sua força nos próximos anos sem que a liberdade e
a igualdade políticas sejam garantidas ao povo, haverá um grande exemplo de que
é possível um outro caminho para o desenvolvimento, mesmo que à custa de muito
autoritarismo.
O surgimento daquilo que vem sendo chamado de democracias iliberais é outra manifestação da crise atual. São regimes políticos que mantêm o processo de votação popular, mas que criam dificuldades para os opositores do governo (na eleição e fora dela) e, ainda, enfraquecem qualquer forma de controle institucional do governante. Com o tempo, esse modelo vai atingindo outras esferas das liberdades individuais, tanto as clássicas (como a liberdade de expressão) como as de novo tipo, presentes no conceito de diversidade (étnica, cultural, de gênero etc.). Países como a Turquia e a Venezuela já chegaram a tal estágio, e a Rússia é o país mais poderoso e bem-sucedido deste modelo, mantendo eleições e restrições de liberdade.
O surgimento daquilo que vem sendo chamado de democracias iliberais é outra manifestação da crise atual. São regimes políticos que mantêm o processo de votação popular, mas que criam dificuldades para os opositores do governo (na eleição e fora dela) e, ainda, enfraquecem qualquer forma de controle institucional do governante. Com o tempo, esse modelo vai atingindo outras esferas das liberdades individuais, tanto as clássicas (como a liberdade de expressão) como as de novo tipo, presentes no conceito de diversidade (étnica, cultural, de gênero etc.). Países como a Turquia e a Venezuela já chegaram a tal estágio, e a Rússia é o país mais poderoso e bem-sucedido deste modelo, mantendo eleições e restrições de liberdade.
O
discurso liberal não prolifera apenas nos países menos desenvolvidos. O
populismo de direita, quando não fascista, prolifera na França, Alemanha e, com
mais força, em grande parte do Leste Europeu. O presidente Trump até contém
algum desses elementos, como ficou claro no episódio da imigração e na forma
como trata a questão racial. Mas os Estados Unidos são um caso bem mais
complexo, porque a estrutura institucional de freios e contrapesos, por ora,
tem barrado algumas ações do Executivo federal, embora nunca um governante dos
EUA tenha chegado tão perto de colocar o modelo liberal em risco.
Menos
comentado pelos estudos de ciência política e quase nada debatido na mídia, há
um outro fenômeno relevante: o liberalismo com medo de democracia. Trata-se da
visão mais vinculada ao globalismo e a uma defesa restritiva do modelo
representativo. Em outras palavras, em nome da ordem econômica liberal
propõe-se que o povo - principalmente os mais pobres e os que perderam empregos
e status no sistema atual - e o governante por ele eleito devam admitir que
nada pode ser feito para aumentar a igualdade, a não ser esperar que, num belo
dia, ela surja das "boas políticas econômicas".
Nesse
tipo de argumento, o populismo vira o maior inimigo, quando os liberais com
medo de democracia deveriam estar preocupados com o verdadeiro fator que hoje
afasta o liberalismo da visão democrática: o crescimento da desigualdade em todo o
mundo, e sua manutenção em níveis insuportáveis nos países menos desenvolvidos.
E o que
esse debate tem a ver com o Brasil, pergunta o leitor ansiosamente? Está
intimamente ligado às eleições de 2018. De um lado, o mais antiliberal de todos
os candidatos é Jair Bolsonaro, que propôs recentemente o aumento do número dos
ministros do STF, para montar sua maioria lá. Esse foi o caminho da ditadura
militar e de muitas outras experiências autoritárias recentes. Bolsonaro quer
ganhar a eleição e não ter seu poder limitado. Por outro lado, o chamado centro
reformista precisa apresentar propostas para combater a desigualdade,
tornando-a prioridade número um da nação. Se seus representantes não souberem o
que fazer com a exclusão social aviltante que há no país, de duas, uma: ou
ficam sem chances de ganhar a disputa presidencial - os chamados extremos é que
estão falando com o povo -, ou caso vençam o pleito, o que ainda é possível,
terão enormes dificuldades para governar a panela de pressão brasileira.
Para ter
um futuro melhor, o Brasil precisará reconciliar liberalismo e democracia,
combinando os dois conforme as necessidades do país. Qualquer outro caminho
será uma forma de restringir a liberdade ou a igualdade, ou ambas - tal qual já
existe nas periferias urbanas brasileiras.
Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da
FGV-SP, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: fabrucio@gmail.com
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