José de Souza Martins*
O
pensamento superficial de grupos alheios à grande tradição do pensamento
crítico imputa ao que não corresponde aos pressupostos ideológicos de seus
partidos a qualidade negativa de "ópio do povo". Nestes dias, há quem
diga que a Copa tem entre nós essa função inebriante. É para ganhar e drogar.
O "ópio do povo" aparece na "Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel", de 1843, de Karl Marx. Texto escrito cinco anos antes de que ele e Friedrich Engels escrevessem, por encomenda, o "Manifesto Comunista". Um texto que consagrou outra frase feita, a de que a história de toda sociedade é história de luta de classes. Um texto antidialético porque, ao simplificar, conflita com a própria teoria marxiana da história que ganharia consistência aos poucos na obra dos dois.
O "ópio do povo" aparece na "Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel", de 1843, de Karl Marx. Texto escrito cinco anos antes de que ele e Friedrich Engels escrevessem, por encomenda, o "Manifesto Comunista". Um texto que consagrou outra frase feita, a de que a história de toda sociedade é história de luta de classes. Um texto antidialético porque, ao simplificar, conflita com a própria teoria marxiana da história que ganharia consistência aos poucos na obra dos dois.
A metáfora de ópio do povo antecede a definição comunista da história. E
não é explicativa. Originalmente, antes de se tornar frase feita, era esforço
didático para explicar o fato sociológico mais significativo das sociedades e
suas peculiaridades na sociedade contemporânea: a alienação. Isto é, o
estranhamento do homem em relação às condições sociais de sua existência, a
ilusão e o autoengano que obscurecem ao homem comum sua cumplicidade com o que
o subjuga e cega. A dificuldade para desvendar as condições objetivas de
existência de todos, mesmo de Karl Marx. Mas o tempo revelaria que a
consciência que conta não é necessariamente a consciência teórica e abstrata.
São as contradições cotidianas que colocam o agir ao alcance do pensar crítico.
Em outros de seus trabalhos, Marx retorna à metáfora do ópio do povo. Na
sociedade industrial nascente, não era incomum que o ópio fosse droga utilizada
por mães operárias para adormecer os filhos pequenos que ficavam em casa sozinhos,
enquanto elas iam para o trabalho nas fábricas.
A crítica do ópio do povo foi feita por Marx em nome da razão e da
possibilidade política da desalienação. Ele não foi o único a se preocupar com
as dificuldades para uma consciência racional das condições sociais da vida.
Émile Durkheim, sociólogo francês de orientação radicalmente oposta à de Marx,
também fundou sua sociologia na possibilidade da consciência sociológica da
anomia, a conduta anômica porque orientada por valores desencontrados com a
organização objetiva da sociedade, a dificuldade para que o homem comum saiba
quem de fato é. O pensamento crítico desvenda as condições de superação da
ilusão e do autoengano.
Porque
herança da Revolução Francesa e próprio do seu tempo, Marx toma a religião como
a alienação da época. Mas ele também se refere à ideologia como instrumento de
uma consciência deformada e alienada da realidade. Mesmo ideologia de esquerda
e relativa a injustiças sociais.
O próprio Marx era um alienado, fosse nas relações de família, fosse em
sua concepção do lugar social da mulher. Os dolorosos problemas de pai
autoritário que teve com as filhas são uma indicação. A atitude grosseira em
relação à morte de Mary Burns, companheira de Engels, operária, analfabeta e
católica, é outra.
Nos momentos potencialmente alienantes das Copas do Mundo, sempre há
quem defina o futebol como o ópio do povo. Porém, desde a Copa de 1950, que o
Brasil perdeu para o Uruguai, nenhuma Copa revelou-se o narcótico ideológico de
amortecimento de nossa consciência social e política. Ganhando ou perdendo, os
brasileiros não se tornaram eleitoralmente coniventes com os bons governantes
nem com os maus governantes.
Houve
notórias tentativas de políticos de "faturar" com vitórias
brasileiras. É melancólico o caso do general Garrastazu Médici, presidente no
regime militar, justamente por sua frágil concepção das responsabilidades
cidadãs de governante. Expôs-se ao ridículo ao tentar instrumentalizar a
vitória do Brasil em 1970.
Mesmo assim, ainda nestes dias o ex-presidente Lula da Silva esforça-se como cronista esportivo para angariar prestígio vicário dos êxitos da seleção brasileira nesta Copa do Mundo. É pouco provável que dê certo. Nas últimas Copas, o povo brasileiro tem dado demonstrações claras de que separa futebol de política.
Mesmo assim, ainda nestes dias o ex-presidente Lula da Silva esforça-se como cronista esportivo para angariar prestígio vicário dos êxitos da seleção brasileira nesta Copa do Mundo. É pouco provável que dê certo. Nas últimas Copas, o povo brasileiro tem dado demonstrações claras de que separa futebol de política.
O futebol vem gerando uma cautelosa identidade brasileira separada de
política e de religião. Cada vez mais, se torna um meio supletivo de afirmação
identitária dos brasileiros, uma busca de alternativa para aquilo que a
política e os políticos usurparam do povo, na medida em que usam mal e em
proveito próprio o instituto da representação política. Com essa nova e significativa
função social do futebol, o povo chuta os políticos. O que não é
necessariamente bom, na medida em que com os políticos estamos chutando também
a política.
* José de
Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros
livros, autor de "O Coração da Paulicéia Ainda Bate" (Editora
Unesp/Imprensa Oficial).
proteger o investimento que o Valor faz na qualidade de seu jornalismo.
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