Luli Radfahrer*
O hábito de discordar vem se tornando
fora de moda e o resultado é
um ambiente raso e hipócrita
Não se fazem mais debates como antigamente. E a culpa não é da internet, pelo menos em parte. É certo que a facilidade de acesso a bases de dados de todos os tipos tirou dos congressos a novidade das descobertas, mas isso não é motivo para o esvaziamento das pautas, muito pelo contrário.
Justo hoje que as tecnologias de captação, distribuição e compartilhamento são cada vez mais baratas e fáceis de usar, o ambiente de simpósios deveria efervescer em ideias, confrontos, colaborações e esclarecimentos, cujo calor das discussões tornaria comuns episódios como a baixaria entre Karl Popper e Ludwig Wittgenstein, em 1946.
Wittgenstein argumentava que as questões filosóficas não passavam de problemas linguísticos. Popper discordava. Para estimular o debate, a Universidade de Cambridge convidou Popper para expor suas ideias, com Wittgenstein e outros figurões no auditório.
A expectativa era grande, mas não para o que ocorreu. Mal começado o evento, Wittgenstein pegou o espeto da lareira e, armado com ele, saiu gritando que Popper estava errado. A situação só não terminou em tragédia porque alguém da plateia gritou para que ele sossegasse. A lenda diz que a bronca veio de Bertrand Russell, pouco importa.
Hoje isso não aconteceria. Dominados pelo politicamente correto, eventos e palestras não estão abertos à discórdia. Como no Facebook, pode-se curti-los ou evitá-los, mas não há como reprová-los, pois até os comentários podem ser censurados. Gênios polêmicos como Popper, Wittgenstein e Russell, não propensos a críticas, dificilmente seriam convidados para a mesma mesa-redonda. E todos perderíamos.
"O resultado é um ambiente raso e hipócrita,
em que críticas são desencorajadas.
As apresentações, quase religiosas, pregam
que só há um lado "certo" a seguir:
aquele apresentado pela celebridade
que ocupa o palco e apresenta,
para uma plateia ignorante,
sua visão particular de Paraíso."
Eventos hoje têm agenda publicitária e pragmática. Apresentados como um lugar mágico em que não há dúvidas e todos se sentem mais inteligentes no final, a maioria tem um forte componente de autoajuda, principalmente quando levado em conta o currículo e conteúdo apresentado. No TED, a mais popular (e copiada) entre as conferências "new age", apresentações curtas, rasas e emotivas são intercaladas com números musicais ou cômicos. Respeitável público, está armado o picadeiro. Na forma de uma playlist, apresentada por um mestre de cerimônias, powerpoints e vídeos se acumulam até o clímax cujos efeitos especiais só perdem para a distribuição de brindes e a festa. Mais panis et circensis, impossível.
O resultado é um ambiente raso e hipócrita, em que críticas são desencorajadas. As apresentações, quase religiosas, pregam que só há um lado "certo" a seguir: aquele apresentado pela celebridade que ocupa o palco e apresenta, para uma plateia ignorante, sua visão particular de Paraíso.
Todos estão livres para expressar suas opiniões, desde que concordem. O milenar hábito de discordar e debater vem se tornando, aos poucos, fora de moda. A maior crítica permitida é uma ironia covarde, camuflada sob perfis anônimos ou mascarados.
A oposição saudável entre duas inteligências de igual calibre, que permite a cada participante que decida por conta própria qual lado e em que grau deve apoiar, é cada vez mais rara. Se essa tendência continuar, talvez acabe restrita às arenas de MMA.
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* Professor na USP
Fonte: Folha on line, 09/01/2012
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