segunda-feira, 4 de novembro de 2019

ALMAS DE NOVEMBRO

Leandro Karnal* 
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De todas as ilusões criadas pelos humanos, a ideia de imortalidade do espírito é a mais tocante

Sou uma pessoa cética, como alguns sabem. Ao longo da minha existência, em nenhum momento, percebi qualquer manifestação concreta de algum fenômeno que pudesse colocar em xeque meu cérebro que duvida.  

Fui religioso, muito. Porém, mesmo naquela piedosa juventude, jamais encontrei uma manifestação que fugisse ao sentido material do que eu via. Eu tinha fé, intensa por sinal. Mesmo crente, meus olhos nunca viram algo que contrariasse o mundo visível. Em resumo, quando eu acreditava muito em Deus, nada ao meu redor levitava, fulgia, transmutava, operava milagres, ressuscitava ou mostrava uma ação fora das estritas leis da física clássica. Eu seguia uma convicção interior e nada no mundo visível e audível ecoava místico. Ao contrário do apóstolo Tomé, nunca pedi ou exigi provas. Minhas trombetas não derrubavam as muralhas de Jericó e nunca contemplei, sequer em sonhos, escadas com anjos como o ocorrido com o neto de Abraão. As doenças em mim e na família progrediam ou não de acordo com os tratamentos. Eu pedia em prece e recebia ou não dentro de uma estatística matemática previsível na teoria dos jogos. Todavia, eu acreditava e Deus não se manifestava dentro de uma dedicação interna que, claro, permitiria ao Dr. Freud classificar minhas crenças como neuroses simples ou superego projetado em entidade tribal protetora.  

Quando cheguei ao estágio atual, deixei de pedir curas para a família ou que a morte não levasse um ente querido. E, tal como ocorria ao Leandro súplice de antes, as doenças e as mortes continuaram ocorrendo com regularidade matemática, levando bons e ruins, sem lógica visível de força superior. 
Supus, no velório do meu pai, que meu ateísmo fraquejaria. Do nome à formação, do afeto ao patrocínio, tudo eu devia ao homem (muito parecido fisicamente comigo) que ali jazia, frio e silente. Seria o momento de voltar ao mundo religioso? Nada ocorreu. Eu estava diante da morte e do fim. Refleti que isso ocorreria comigo também e senti a dor da saudade. Nenhuma oração. O Santo Graal estava vazio.  

Oito anos depois, a foice da indesejada chega ao solar dos Karnais novamente. Foi-se minha mãe. Rasgou-se meu mundo e a angústia me abateu. Os céticos da família choravam ao lado dos religiosos. Todos estavam juntos na ausência lancinante daquela mulher extraordinária. Na noite após a cremação, fiquei lendo cartas, vendo fotos e chorando na cama materna. Estava sozinho na casa. Foi o momento em que eu desejei, ardentemente, ter uma visão dela. Reconheço que foi um momento de quase desespero. Fraquejei. Confesso. Pedi que ela surgisse, que desse um sinal que indicasse que estava tudo bem, que movesse algo, que me visitasse, ao menos, em sonhos. O perfume dela ainda era perceptível no ambiente e eu teria ficado feliz, muito feliz, com um discreto sinal. Não buscava saber se existia vida após a morte, queria saber se minha mãe continuava em algum lugar fora daquelas fotos de viagens felizes e festas saudosas. Desejei com intensidade. Nunca falei disso antes e nem sei se me orgulho. Era um momento de orfandade pura e simples. O silêncio lancinante que eu vivia sem pai e sem mãe dominava a casa que eles construíram e na qual eu fora tão feliz com meus irmãos. Passei parte da noite assim, sozinho, como jamais me senti. O óbvio estava diante de mim e se repetia no silêncio absoluto e indevassável. Não havia fantasmas, não havia Deus, não havia nada além do que eu sabia, apenas desejava estar errado. Nada. Absolutamente nada. O sentido, claro, eu teria de inventar, como tenho feito há tantos anos. Seria obra minha, aleatória, não universal, fora da teologia e totalmente autoral.  

Foi o penúltimo suspiro de uma melancolia teológica. Em outra ocasião, visitando, para pesquisa, uma instituição religiosa, o encarregado anunciou que meu pai enviaria mensagem. A surpresa foi total. Não estava lá para isso. Feito silêncio, folha branca e lápis na mão do receptor, foi surgindo a mensagem. Entregaram-me o papel que, concretamente, terminaria minha dúvida por completo. Foi a última vez que uma parte minha desejou ler uma carta inédita do meu pai. Ele me escreveu, em vida, missivas semanais por mais de duas décadas. Conhecia a letra e o estilo. Sorri nervoso e li o que me entregaram. Enrubesci com raiva. Era um relato genérico chamando-me de “meu filhinho” (algo que ele jamais disse) e tomado de erros de português. Fui irônico diante da falcatrua e comentei que o desencarne parecia produzir um declínio forte no domínio gramatical, uma das glórias do dr. Renato Karnal em vida. Amassei o texto no bolso com os “menas” e “para mim dizer” e fui para casa irritado comigo mesmo.  

Admiro os amigos que recebem visitas de espíritos, contemplam vultos que passam nos corredores das casas e, felizes, recebem mensagens do além com fé total. Não os condeno. A melancolia do vazio e a saudade desesperadora produzem um desejo que pode dar origem a uma imensa convicção. Como julgar alguém se eu mesmo fui traído pelo desejo e pela dor? De todas as ilusões criadas pelos humanos, a ideia de imortalidade do espírito é a mais tocante e compreensível. Como pensa Nietzsche no Zaratustra, o sangue dos sacerdotes que passam é idêntico ao meu. Todos sentimos dor e solidão. Alguns são mais imaginativos do que outros para encontrar atenuantes. Boa semana para todas as almas e todos os corpos.
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* Historiador brasileiro, professor da Universidade Estadual de Campinas, especializado em história da América. Escritor.
Fonte:  https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,almas-de-novembro,70003073840 03/11/2019
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