Leandro Karnal*
De todas as ilusões criadas pelos humanos, a ideia de imortalidade do espírito é a mais tocante
Sou
uma pessoa cética, como alguns sabem. Ao longo da minha existência, em
nenhum momento, percebi qualquer manifestação concreta de algum fenômeno
que pudesse colocar em xeque meu cérebro que duvida.
Fui
religioso, muito. Porém, mesmo naquela piedosa juventude, jamais
encontrei uma manifestação que fugisse ao sentido material do que eu
via. Eu tinha fé, intensa por sinal. Mesmo crente, meus olhos nunca
viram algo que contrariasse o mundo visível. Em resumo, quando eu
acreditava muito em Deus, nada ao meu redor levitava, fulgia,
transmutava, operava milagres, ressuscitava ou mostrava uma ação fora
das estritas leis da física clássica. Eu seguia uma convicção interior e
nada no mundo visível e audível ecoava místico. Ao contrário do
apóstolo Tomé, nunca pedi ou exigi provas. Minhas trombetas não
derrubavam as muralhas de Jericó e nunca contemplei, sequer em sonhos,
escadas com anjos como o ocorrido com o neto de Abraão. As doenças em
mim e na família progrediam ou não de acordo com os tratamentos. Eu
pedia em prece e recebia ou não dentro de uma estatística matemática
previsível na teoria dos jogos. Todavia, eu acreditava e Deus não se
manifestava dentro de uma dedicação interna que, claro, permitiria ao
Dr. Freud classificar minhas crenças como neuroses simples ou superego
projetado em entidade tribal protetora.
Quando cheguei
ao estágio atual, deixei de pedir curas para a família ou que a morte
não levasse um ente querido. E, tal como ocorria ao Leandro súplice de
antes, as doenças e as mortes continuaram ocorrendo com regularidade
matemática, levando bons e ruins, sem lógica visível de força superior.
Supus, no velório do
meu pai, que meu ateísmo fraquejaria. Do nome à formação, do afeto ao
patrocínio, tudo eu devia ao homem (muito parecido fisicamente comigo)
que ali jazia, frio e silente. Seria o momento de voltar ao mundo
religioso? Nada ocorreu. Eu estava diante da morte e do fim. Refleti que
isso ocorreria comigo também e senti a dor da saudade. Nenhuma oração. O
Santo Graal estava vazio.
Oito anos depois, a foice da
indesejada chega ao solar dos Karnais novamente. Foi-se minha mãe.
Rasgou-se meu mundo e a angústia me abateu. Os céticos da família
choravam ao lado dos religiosos. Todos estavam juntos na ausência
lancinante daquela mulher extraordinária. Na noite após a cremação,
fiquei lendo cartas, vendo fotos e chorando na cama materna. Estava
sozinho na casa. Foi o momento em que eu desejei, ardentemente, ter uma
visão dela. Reconheço que foi um momento de quase desespero. Fraquejei.
Confesso. Pedi que ela surgisse, que desse um sinal que indicasse que
estava tudo bem, que movesse algo, que me visitasse, ao menos, em
sonhos. O perfume dela ainda era perceptível no ambiente e eu teria
ficado feliz, muito feliz, com um discreto sinal. Não buscava saber se
existia vida após a morte, queria saber se minha mãe continuava em algum
lugar fora daquelas fotos de viagens felizes e festas saudosas. Desejei
com intensidade. Nunca falei disso antes e nem sei se me orgulho. Era
um momento de orfandade pura e simples. O silêncio lancinante que eu
vivia sem pai e sem mãe dominava a casa que eles construíram e na qual
eu fora tão feliz com meus irmãos. Passei parte da noite assim, sozinho,
como jamais me senti. O óbvio estava diante de mim e se repetia no
silêncio absoluto e indevassável. Não havia fantasmas, não havia Deus,
não havia nada além do que eu sabia, apenas desejava estar errado. Nada.
Absolutamente nada. O sentido, claro, eu teria de inventar, como tenho
feito há tantos anos. Seria obra minha, aleatória, não universal, fora
da teologia e totalmente autoral.
Foi o penúltimo suspiro de uma
melancolia teológica. Em outra ocasião, visitando, para pesquisa, uma
instituição religiosa, o encarregado anunciou que meu pai enviaria
mensagem. A surpresa foi total. Não estava lá para isso. Feito silêncio,
folha branca e lápis na mão do receptor, foi surgindo a mensagem.
Entregaram-me o papel que, concretamente, terminaria minha dúvida por
completo. Foi a última vez que uma parte minha desejou ler uma carta
inédita do meu pai. Ele me escreveu, em vida, missivas semanais por mais
de duas décadas. Conhecia a letra e o estilo. Sorri nervoso e li o que
me entregaram. Enrubesci com raiva. Era um relato genérico chamando-me
de “meu filhinho” (algo que ele jamais disse) e tomado de erros de
português. Fui irônico diante da falcatrua e comentei que o desencarne
parecia produzir um declínio forte no domínio gramatical, uma das
glórias do dr. Renato Karnal em vida. Amassei o texto no bolso com os
“menas” e “para mim dizer” e fui para casa irritado comigo mesmo.
Admiro
os amigos que recebem visitas de espíritos, contemplam vultos que
passam nos corredores das casas e, felizes, recebem mensagens do além
com fé total. Não os condeno. A melancolia do vazio e a saudade
desesperadora produzem um desejo que pode dar origem a uma imensa
convicção. Como julgar alguém se eu mesmo fui traído pelo desejo e pela
dor? De todas as ilusões criadas pelos humanos, a ideia de imortalidade
do espírito é a mais tocante e compreensível. Como pensa Nietzsche no
Zaratustra, o sangue dos sacerdotes que passam é idêntico ao meu. Todos
sentimos dor e solidão. Alguns são mais imaginativos do que outros para
encontrar atenuantes. Boa semana para todas as almas e todos os corpos.
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* Historiador brasileiro, professor da Universidade Estadual de Campinas, especializado em história da América. Escritor.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,almas-de-novembro,70003073840 03/11/2019
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