segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Quem tem medo do Coringa?

Mário Corso*

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A Ancol - Associação Nacional dos Colunistas - me advertiu por não falar do filme. Então...

Gostei do Coringa pela extraordinária performance da loucura. Quem já trabalhou com psicose o reconhece: o corpo magro, irrequieto, falsamente frágil, e rústico, parecendo ser feito de madeira.

Na psicose, o centro gravitacional tende à mulher, pois eles estão mais vulneráveis a uma identificação exclusivamente materna. E no começo do filme, antes da virada, ele é de uma delicadeza quase feminina, espelhando a mãe que cuida com desvelo.

Uma das fobias clássicas é a do palhaço, porque o maior medo de uma criança é ver seus progenitores, nesse caso o pai, sendo zombado. O palhaço é signo de um pai decaído e é nessa gramática que gira a identidade inicial do personagem.

O Coringa sonha com um pai que desesperadamente lhe falta, mas ele segura a onda. Porém, quando descobre que seu esteio afetivo materno é uma farsa, soltam-se os poucos fios que parcamente o conectavam à sanidade e abre-se a porta do inferno. Faz sentido que nesse momento ele mude de nome, afinal, Coringa é uma carta avulsa, sem filiação de naipe.

O filme é uma de tantas obras que buscam uma resposta e uma face para o mal. Nosso racionalismo se recusa a aceitar que o crime, algo tão grave, possa não ter uma origem lógica ou justificável. Porém, o crime muitas vezes está ligado a uma banalidade, em outras palavras, à estupidez. Apesar de tantos progressos em tantas áreas, seguimos sendo um macaco que aprendeu a falar; logo, sujeitos a momentos em que a ação não faz sentido.

Entenda estupidez quando se age causando dano sem proveito para si e não raro, trazendo prejuízo para nós mesmos. Embora os exemplos sejam evidentes e múltiplos, seguimos buscando uma racionalidade de todo agir criminoso, quando só alguns fazem sentido. O Coringa, portanto, é mais uma teoria do que acreditamos ser a gênese da psicopatia e da maldade, do que realmente ela é.
O medo de que pessoas se identifiquem com esse Coringa humanizado pelo martírio e saiam matando é improcedente. Não que não possa acontecer, a loucura é imprevisível, mas apenas tomaria emprestada uma fantasia que, se não fosse essa, seria outra. Nem que barrássemos toda a produção ficcional estaríamos a salvo dos estúpidos, dos que enlouquecem, e de seus atos insensatos.

Se achamos que seriam tão tentadoras as atitudes violentas e grotescas do personagem, é porque ele nos traduz na tendência ao ressentimento. Quem não flertou com a ideia de que o mundo lhe deve mais reconhecimento, oportunidades e recompensas?

O filme é pesado, brutal mas catártico. Melhor que as fantasias de ressentimento ganhem a luz do que nos espreitem na sombra, onde namoraríamos com o prazer secreto de realizá-las. O horror na ficção pode ser a vacina que barra o horror real.
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* Psicanalistas. Escritor. Colunista da ZH
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=2a4436e6b50383d2f3a205f11f9c829a
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