José de Souza Martins*
FOTO: Carvall
Em Concepción, no
Chile, a indústria pesqueira e a indústria naval haviam sido duramente
atingidas pela economia neoliberal da ditadura militar
Milton Friedman, da
Universidade de Chicago, mentor dos “Chicago boys”, que disseminam o
neoliberalismo econômico nos países precários como o nosso, disse que uma
economia livre só tem sentido em sociedades democráticas e livres. No entanto,
esse neoliberalismo tem grande apelo entre os seres totalitários que transformam
as reformas econômicas neoliberais em verdadeiros golpes de Estado de
governantes ocultos que governam sem mandato, os técnicos que implementam as
medidas que as efetivam.
No mais das vezes,
com elas, revogam conquistas sociais preconizadas pelos próprios empresários,
induzidos pelas inquietações e demandas dos trabalhadores, como técnicas
políticas de racionalização das relações de trabalho e de incremento da
produtividade do trabalho através da paz social.
O Chile é
apresentado, na propaganda enganosa do neoliberalismo, como país em que as
duras medidas que o caracterizam acabam resultando em crescimento econômico e
modernização em benefício de todos. O protesto das ruas diz que não. É verdade
que o Chile das grandes dificuldades econômicas de 1973 sofreu um crescimento
econômico extraordinário de lá para cá, mas às custas de consequências sociais
excludentes.
Economistas, e não
só eles, têm dificuldade para lidar com a dimensão histórica do tempo, com as
temporalidades sociais. O economismo de gente que pensa como os “Chicago boys”,
como se vê no dia a dia, é o da economia de longo prazo pensada e reduzida a
providências e consequências de prazo curto.
Baseia-se no
equívoco de supor que o tempo da história é linear, e não a diversidade dos
ritmos do desenvolvimento, do desencontro entre crescimento econômico e
desenvolvimento social. Diferentes setores da sociedade são atingidos
desigualmente pela economia e pela política econômica.
Aqui no Brasil, no
Chile e em todas as partes em que a sociedade se tornou cobaia do
crescimentismo neoliberal, foi-o no lugar do desenvolvimento econômico e
social. A rapidez das quedas e subidas na vida e a consciência da incerteza que
as acompanha geraram e disseminaram os componentes sociais mais sofridos e
menos discutidos do neoliberalismo: o medo e a insegurança resultantes.
Os sociólogos
deveriam fazer pesquisas sobre isso nos hospitais e nas clínicas médicas, sobre
as enfermidades decorrentes da incerteza numa sociedade, como a capitalista da
atualidade neoliberal, que investe fortunas só para ter certeza sobre a
lucratividade dos capitais. Certeza para quem ganha e a incerteza consequente
para quem depende do trabalho. Nada investe nas pesquisas sociais para avaliar
o caráter socialmente destrutivo e perverso das inovações econômicas.
A alquimia dos
agentes e cúmplices do neoliberalismo não se revela apenas nas informações
estatísticas sobre as desigualdades. Agora mesmo, aqui no Brasil, o IBGE
anunciou que, em 2018, 1 milhão de pessoas havia caído abaixo do nível de
pobreza, as que ganham no máximo R$ 9,30 por dia. Desde 2015, a cada ano, 1
milhão de pessoas têm sido transferidas para o estrato mais baixo da
inferioridade social.
Há anos que observo
em várias partes as minúcias dessa degradação que se manifesta na dimensão
dramática e nas consequências da administração irresponsável das políticas
econômicas.
Durante 12 anos fui
membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas
Contemporâneas de Escravidão, voltada para as vítimas desvalidas da tirania
econômica e social. Em 2004, tendo que participar de um seminário da FAO em
Santiago do Chile, fui designado pela Junta para fazer também uma visita a um
projeto social da Igreja Católica em Concepción. Ali, a indústria pesqueira e a
indústria naval haviam sido duramente atingidas pela economia neoliberal da
ditadura militar. A pobreza estendera-se pela região.
O programa social
que visitei durante um dia inteiro era um programa de educação complementar,
alimentação e orientação de crianças no mais das vezes abandonadas pelos pais
em decorrência da crise econômica. Muitas delas “caíram” na prostituição
infantil e se tornaram mantenedoras do que sobrara da família.
Um dos casos que
analisei em detalhe foi o de um menino de 12 anos, de nome Felipe. Seu
principal amigo e colega de trabalho era seu cavalo, com o qual trabalhava
diariamente na catação de ferro-velho para sustentar, em primeiro lugar, seu
próprio cavalo; em segundo lugar, sua avó; e, com o que sobrava, a si mesmo. A
política econômica da prosperidade meramente visual da capital do país cancelara
o futuro das crianças que visitei. Um cavalo manso se tornara o arrimo e amigo
de Felipe e sua avó. Seres ausentes das estatísticas da prosperidade econômica
sem ética, que mostram para encobrir.
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* José de Souza
Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista
de Letras. Entre outros livros, autor de "A Sociabilidade do Homem
Simples" (Contexto).
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