Juremir Machado da Silva*
Então eu fui colher flores do campo, pois, naquela época,
homens colhiam flores do campo e não se limitavam a discutir política e
futebol. Havia homens que dedicavam a vida à poesia e gente que admirava
os poetas. Eu cultivava lembranças certo de que, no futuro, colheria o
que tivesse plantado. Minha visão de mundo era, caso isso faça algum
sentido, vegetal. Ninguém me entendia. Eu não me importava.
Hoje, caminho por entre os sulcos do que já fomos. Deixamos para trás
os caules, as lagoas, pátios, roldanas, os arames, os poços, veredas,
atalhos, badanas. Sobre o bocal dorme o balde, alheio à porta que ainda
bate como se esperasse a mão para fechá-la. Deixamos atrás de nós as
doces figueiras, a sombra amistosa das tardes, sob os cinamomos, uma
terra de areia e de manhãs dispostas, mesas postas para a alegria, num
tempo esperança, especialmente graças ao que não sabíamos. Bem longe,
metálico, um cachorrinho late, como se fosse nosso pensamento, mas o
silêncio recai no entorpecimento. Agora o oceano se esconde do sol e os
rastros se perdem nas ondas. Certas lágrimas lavam nossas pegadas. Pela
estrada ocre, casas e vales, vales e casas, animais no pasto,
eucaliptos, florestas, videiras, olhos que mal dão para o gasto, além da
sensação de que alguma coisa se apagou.
Quem éramos? O que fazíamos? Por onda andávamos? Quais eram os nossos
cenários? Paredes caiadas, ou um girassol, cacos queimados de porcelana
azul junto às rugas secas do grande umbu, vestígios que já fazem
relembrar do esquecimento, daquilo que não fomos, nunca, eu e tu, embora
tivéssemos a certeza de que o futuro nos pertencia. Enquanto assim nos
afastamos do Sul, por um novo caminho de veias expostas, onde os bois
exibem suas enormes panças, e os pássaros ensaiam esquisitas danças, uma
criança com um vidro fosco espia do outro lado dos trilhos. Éramos
terríveis e assustadores naqueles tempos? Através de uma janela sem
brilho, a mãe ralha com o seu filho, um homem esculpe um boneco tosco, a
tarde morna se espreguiça como um cão, compro um souvenir na loja de
lembranças. Ouço Billie Holiday.
Ouço e concluo: minha alma tem rachaduras por onde passa o vento,
essa forma sinuosa e sibilina de não se desconectar do vivido, meus
olhos são fechaduras por onde espio esse passado que se materializa
inteiro, tudo se esvai como um domingo. Faz sentido isso? Quem já não se
sentiu vazio como um domingo que atire a primeira crítica. Quem já não
se viu pleno como uma utopia que se manifeste. Minha alma tem fechaduras
que me blindam contra o tempo. Só que muitos têm a chave. Meus olhos
são rachaduras por onde se espreme o vento, como um navio que se afasta
até o horizonte se apagar como uma vela.
Estava pensando alto sobre tudo isso enquanto imaginava campos
floridos. Sou dado a esse tipo de devaneio no meio da tarde, durante uma
reunião, em consultório médico, durante uma partida de futebol sem
gols. Foi quando alguém me bateu no ombro disse com voz risonha:
– Falando sozinho amigo!
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* Cronista do Correio do Povo. Escritor.
Fonte: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/flores-para-quem-ama-a-vida-1.376993
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