Slavoj Žižek*
Bolivianos em apoio a Evo Morales erguem uma bandeira wiphala, que representa povos indígenas durante uma manifestação em La Paz na última terça-feira, 12 nov. 2019. (AP Photo/Natacha Pisarenko)
É precisamente por terem sido bem-sucedidos que Evo Morales, Garcia Linera e seus seguidores representavam um incômodo tão grande ao establishment liberal.
* TEXTO ENVIADO DIRETAMENTE PELO AUTOR PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO. A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.
Embora eu seja por mais de uma década um
firme apoiador de Evo Morales, devo admitir que, depois de ter lido
sobre a confusão que se seguiu a controversa vitória eleitoral de
Morales, fiquei mergulhado em dúvidas… Teria ele também sucumbido à
tentação autoritária, como ocorreu com muitos esquerdistas radicais no
poder? Contudo, depois de um ou dois dias, as coisas logo ficaram
claras.
Brandindo uma enorme Bíblia encadernada
em couro e se autoproclamando presidente interina da Bolívia, Jeanine
Añes, a segunda vice-presidente do Senado declarou: “A Bíblia retornou
ao palácio do governo.” E emendou: “Queremos ser uma ferramenta
democrática de inclusão e unidade”. O recém-empossado gabinete de
transição, contudo, não continha uma única pessoa indígena. E isso já
diz tudo. Embora a maioria da população da Bolívia seja composta de
indígenas ou mestiços, até a ascensão de Morales esses setores eram
efetivamente excluídos da vida política, reduzidos à maioria silenciosa
daqueles que fazem seu trabalho sujo nas sombras. O que aconteceu com
Morales foi o despertar político dessa maioria silenciosa que não se
enquadrava na rede de relações capitalistas. Não eram ainda proletários
no sentido moderno, permaneciam imersos em suas identidades sociais
tribais pré-modernas – foi assim que Álvaro García Linera, o vice de Morales, descreveu a situação:
“Na Bolívia, a comida
era produzida por agricultores indígenas, prédios e casas eram
construídas por trabalhadores indígenas, as ruas eram limpas por pessoas
indígenas, e a elite e as classes médias encarregava a eles o cuidado
de seus filhos. No entanto, a esquerda tradicional parecia cega para
isso e se ocupava somente com trabalhadores na grande indústria, dando
pouca atenção à identidade étnica desses sujeitos.”
Álvaro Garcia Linera, em entrevista a Marcello Musto para a Truth Out, 9 nov. 2019.
Para compreendê-los, precisamos
incorporar nesse quadro o peso histórico da condição deles: essas
pessoas são os sobreviventes de possivelmente o maior holocausto da
história da humanidade, a obliteração das comunidades indígenas pela
colonização espanhola e inglesa das Américas.
A expressão religiosa do estatuto
pré-moderno deles é a combinação única entre catolicismo e a crença na
Pacha Mama, a figura da Mãe Terra. É por isso que, embora Morales tenha
se declarado católico, na Constituição Boliviana vigente (promulgada em
2009), a Igreja Católica Romana perdeu seu status oficial. No
artigo quarto do documento lê-se: “O Estado respeita e garante a
liberdade de religião e de crenças religiosas, conforma as cosmovisões
de cada indivíduo. O Estado é independente da religião.” É contra essa
afirmação da cultura indígena que o gesto de Añez de exibir a Bíblia é
direcionado. A mensagem é clara: uma afirmação aberta de supremacismo
religioso branco, e uma tentativa não menos aberta de colocar a maioria
silenciosa de volta a seu devido lugar de subordinação. Do México, onde
atualmente encontra-se exilado, Morales já apelou ao Papa para que
intervenha. A reação do pontífice vai nos dizer muito. Será que
Francisco reagirá como um verdadeiro cristão e rejeitará de maneira
firme a re-catolicização forçada da Bolívia como aquilo que ela
realmente é, a saber, como uma jogada política de poder que trai o núcleo emancipatório do cristianismo?
Se deixarmos de lado o possível papel do
lítio no golpe (a Bolívia possui grandes reservas de lítio,
matéria-prima das baterias dos carros elétricos), a grande questão é:
por que a Bolívia representa, por mais de uma década, um incômodo tão
grande ao establishment liberal ocidental? O motivo é muito
peculiar: o fato surpreendente de que o despertar político do tribalismo
pré-moderno na Bolívia não resultou em uma nova versão do Sendero
Luminoso ou do show de horrores do Khmer Rouge. O governo Morales não se
enquadra na história conhecida da esquerda radical que, ao tomar o
poder, estragou tudo econômica e politicamente, gerando pobreza e passou
a manter seu poder por meio de medidas autoritárias. Uma prova do
caráter não-autoritário do governo Morales é que ele não expurgou
militares e forças policiais de seus opositores (razão pela qual eles se
voltaram contra ele).
Morales e seus seguidores, é claro, não
eram perfeitos: eles cometeram erros, havia conflitos de interesse no
interior de seu movimento. No entanto, o balanço geral é realmente
impressionante. Morales não era Chávez, ele não dispunha de recursos do
petróleo para debelar seus problemas, de forma que seu governo precisou
realizar um trabalho duro e paciente de resolução de problemas no país
mais pobre da América Latina. O resultado não foi nada menos do que
milagroso: a economia deslanchou, os índices de pobreza caíram e a saúde
pública melhorou – e tudo isso garantindo que as instituições
democráticas tão caras aos liberais continuaram funcionando. O governo
Morales manteve um equilíbrio delicado entre formas indígenas de
atividade comunal e política moderna, lutando simultaneamente por
tradição e pautas como os direitos das mulheres.
Para que seja contada a história inteira
do golpe na Bolívia, precisamos de um novo Assange parra trazer à tona
documentos secretos relevantes. O que é possível ver agora é que foi
precisamente por terem sido bem-sucedidos que Morales, Linera e seus
seguidores representavam um incômodo tão grande ao establishment
liberal: por mais de uma década a esquerda radical esteve no poder na
Bolívia e o país não “virou uma Cuba ou uma Venezuela”. O socialismo
democrático é possível.
* * *
Leia também, na coluna de Slavoj Žižek no Blog da Boitempo, “De Hong Kong ao Chile?“, sobre as manifestações que vem tomando as ruas em diversas cidades da América do Sul, e “A Amazônia está em chamas“, sobre a urgência e as armadilhas ideológicas da questão ecológica hoje. Em entrevista exclusiva ao Blog da Boitempo,
feita logo após a eleição de Bolsonaro, o filósofo esloveno reflete que
uma novidade potencialmente interessante do Brasil é que aqui o
populismo de direita que está no poder não abriu mão da imposição da
austeridade. Leia aqui.
* * *
* Slavoj Žižek
nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo,
psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por
diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl
Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política
da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto
de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for
Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do
centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou
Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014), O absoluto frágil (2015) e O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente
---------- Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2019/11/18/zizek-bolivia-anatomia-de-um-golpe/
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