quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Um glossário do mundo subterrâneo

JEAN PIERRE CHAUVIN

 

Belial: “Demônio adorado pelo povo de Sidon. O inferno jamais recebeu espírito mais dissoluto, mais sórdido, mais imbuído do vício pelo próprio vício. Sua alma é hedionda” – Foto: Reprodução / Dicionário Infernal

Professor da USP comenta o “Dicionário Infernal”, de Collin de Plancy, coeditado pela Editora da USP

Acaba de sair do prelo o Dicionário Infernal, de Jacques Aguste Simon Collin de Plancy (1793/4-1881). Coeditado pela Editora da USP (Edusp), a Editora UnB e o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, o volume, com capa dura roxa, preenchida por tipologia que evoca manuais da Idade Média, contém 944 páginas e traduz a sexta edição da obra, publicada pela Maison Henri Plon, em Paris, no ano de 1863.

Em seu tempo, o autor despertou ora a desconfiança, ora o beneplácito da sociedade e, especialmente, de representantes ligados à Igreja Católica, como salienta Ana Alethéa de Melo Cesar Osório – pesquisadora da Universidade de Brasília – no prefácio ao livro: “A sexta e última edição (…) incluiu até mesmo um ‘selo’ de aprovação do arcebispo de Arras, Boulogne e Saint-Omer de que não continha nada que pudesse ferir a fé e os costumes”.(1)

Se tivéssemos que descrever do que se trata, poderíamos afirmar que o dicionário consiste num extenso catálogo de nomes próprios de soldados rasos, intermediários e líderes, todos súditos de Lúcifer. Além de trazer as figuras de relevo na monarquia infernal, de Plancy listou figuras históricas (de Sócrates a Voltaire), elencou palavras-chave, algumas de uso corrente, como “abismo”, em acepções que surpreenderão, inclusive, os leitores de vasto repertório.

 Brunilda: “Rainha da Austrásia (reino da Gália merovíngia). Firmou com Satã um pacto segundo o qual ele se comprometia a fazer durante a noite uma estrada até Tournay, que deveria ser concluída antes do canto do galo. Porém Brunilda fez com que seu galo cantasse no exato momento em que o diabo carregava a última pedra, o que rompeu o pacto” – Foto: Reprodução / Dicionário Infernal


Talvez valesse a pena discutir por que Collin de Plancy persistiu em reeditar o livro, originalmente publicado em dois volumes, no ano de 1818. Uma hipótese seria creditar ao dicionarista francês certa forma de conceber o mundo empírico e o espiritual, que continuavam sob o forte impacto das Escrituras, mas também da Enciclopédia Francesa, levada a termo pela intelligentsia francesa, ao final do século 18.

Sob essa perspectiva, poder-se-ia afirmar que o dicionário não só abordava um tema controverso, para aquele tempo, mas respondia materialmente a um novo modo de enxergar os saberes, sob a égide do cientificismo, particularmente o que dizia respeito à sanha classificatória e às taxonomias que norteavam os estudos em torno do corpo de animais e humanos.
  
Martin Bucer: “Grande partidário de Lutero, falecido em Cambridge em 1551. 
Retratam-no muitas vezes seguido por um demônio que lhe sussurrava no ouvido: 
“Quando estavas às portas da morte, assistido por seus amigos, o diabo também compareceu, aproximando-se com uma aparência tão hedionda que não houve pessoa que, de medo, quase não perdesse a vida. Esse diabo levou-lhe a alma” – Foto: Reprodução / Dicionário Infernal


No plano, digamos, cultural, o levantamento de palavras relacionadas ao mundo infernal irradiava a pretensão de classificar os elementos ligados ao subterrâneo e sistematizar o emprego de certas fórmulas, com vistas ao melhor proceder, em chave moral.

Como forma de convidar o internauta à leitura, vejamos alguns exemplos curiosos. Para começar, uma anedota protagonizada pelo Bispo de Hipona, no século 5: “Um dia, estando mergulhado em suas meditações, Santo Agostinho viu passar diante de si um demônio que carregava um livro enorme sobre os ombros. Ele parou e perguntou-lhe o que continha esse livro. ‘É o registro de todos os pecados dos homens, respondeu o demônio’” (p. 33).

Curiosamente, muitos deuses, homens e animais tomariam sua alma de empréstimo aos entes malignos, de acordo com De Plancy. Por exemplo, “os demonógrafos consideram (Baco) como o antigo chefe do sabá instituído por Orfeu” (p. 119).

 
 Deumus: “Divindade dos habitantes de Calicute, em Malabar. Essa divindade, que não passa de um diabo adorado sob o nome de Deumus, porta uma coroa, quatro chifres na cabeça e quatro dentes pontudos na boca, que é imensa; tem nariz pontudo e recurvado, os pés são como patas de galo, e segura entre suas garras uma alma que parece prestes a devorar” – Foto: Reprodução / Dicionário Infernal

A respeito da coruja, tratar-se-ia de “pássaro de mau agouro (…) misterioso porque busca a solidão, assombra os campanários, as torres e os cemitérios. Seu pio é temido, porquanto apenas escutado em meio às trevas” (p. 259). Em relação aos demônios, propriamente ditos, “certos doutos afirmam que (…) se multiplicam entre si, como os homens; (…) Hesíodo lhes confere uma vida de 680.400 anos. Plutarco, sem poder conceber que alguém possa experimentar uma vida tão longa, reduziu-a para 9.720 anos” (p. 283).

Haveria outros planos além do céu e do inferno? Talvez sim.  Efland (2) seria um “país ou ilha, reino das fadas e dos elfos. As fadas e os elfos, que são os espíritos do Norte, às vezes raptam crianças e as levam a Elfland para povoar esse país” (p. 316).

No livro também há espaço para vários homens considerados inimigos da Igreja em seu tempo, como foi o caso de Galileu, afinal “sua teimosia em querer conciliar, à sua maneira, a Bíblia e Copérnico, o fez perseguido pela Inquisição” (p. 405).



O Vampiro de Kisilova: “No começo de setembro, veio a falecer, na vila de Kisilova, 
um velho de 62 anos de idade. Três dias após seu enterro, ele apareceu a 
seu filho durante a noite e pediu-lhe de comer. Este obedeceu e o espectro alimentou-se,
após o que desapareceu. No dia seguinte, o filho contou aos vizinhos o que lhe sucedera. 
O fantasma não apareceu nesse dia; porém, três noites depois, ele voltou
e pediu novamente a ceia. Não se sabe se seu filho tornou a 
obedecê-lo ou não; foi, todavia, encontrado morto no dia seguinte, na cama”
 – Foto: Reprodução / Dicionário Infernal
Quais as faces de Lúcifer? De que modo o demônio se manifesta, diante dos homens, especialmente os mais necessitados financeiramente? “O homem neg

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