JEAN PIERRE CHAUVIN
Belial: “Demônio adorado pelo povo de Sidon. O inferno jamais recebeu espírito mais dissoluto, mais sórdido, mais imbuído do vício pelo próprio vício. Sua alma é hedionda” – Foto: Reprodução / Dicionário Infernal
Professor da USP comenta o “Dicionário Infernal”, de Collin de Plancy, coeditado pela Editora da USP
Acaba de sair do prelo o Dicionário Infernal, de Jacques
Aguste Simon Collin de Plancy (1793/4-1881). Coeditado pela Editora da
USP (Edusp), a Editora UnB e o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, o
volume, com capa dura roxa, preenchida por tipologia que evoca manuais
da Idade Média, contém 944 páginas e traduz a sexta edição da obra,
publicada pela Maison Henri Plon, em Paris, no ano de 1863.
Em seu tempo, o autor despertou ora a desconfiança, ora o beneplácito
da sociedade e, especialmente, de representantes ligados à Igreja
Católica, como salienta Ana Alethéa de Melo Cesar Osório – pesquisadora
da Universidade de Brasília – no prefácio ao livro: “A sexta e última
edição (…) incluiu até mesmo um ‘selo’ de aprovação do arcebispo de
Arras, Boulogne e Saint-Omer de que não continha nada que pudesse ferir a
fé e os costumes”.(1)
Se tivéssemos que descrever do que se trata, poderíamos afirmar que o
dicionário consiste num extenso catálogo de nomes próprios de soldados
rasos, intermediários e líderes, todos súditos de Lúcifer. Além de
trazer as figuras de relevo na monarquia infernal, de Plancy listou
figuras históricas (de Sócrates a Voltaire), elencou palavras-chave,
algumas de uso corrente, como “abismo”, em acepções que surpreenderão,
inclusive, os leitores de vasto repertório.
Brunilda: “Rainha da Austrásia (reino da Gália merovíngia). Firmou com
Satã um pacto segundo o qual ele se comprometia a fazer durante a noite
uma estrada até Tournay, que deveria ser concluída antes do canto do
galo. Porém Brunilda fez com que seu galo cantasse no exato momento em
que o diabo carregava a última pedra, o que rompeu o pacto” – Foto:
Reprodução / Dicionário Infernal
Talvez valesse a pena discutir por que Collin de Plancy persistiu em
reeditar o livro, originalmente publicado em dois volumes, no ano de
1818. Uma hipótese seria creditar ao dicionarista francês certa forma de
conceber o mundo empírico e o espiritual, que continuavam sob o forte
impacto das Escrituras, mas também da Enciclopédia Francesa, levada a termo pela intelligentsia francesa, ao final do século 18.
Sob essa perspectiva, poder-se-ia afirmar que o dicionário não só
abordava um tema controverso, para aquele tempo, mas respondia
materialmente a um novo modo de enxergar os saberes, sob a égide do
cientificismo, particularmente o que dizia respeito à sanha
classificatória e às taxonomias que norteavam os estudos em torno do
corpo de animais e humanos.
Martin Bucer: “Grande partidário de Lutero, falecido em Cambridge em 1551.
Retratam-no muitas vezes seguido por um demônio que lhe sussurrava no ouvido:
“Quando estavas às portas da morte, assistido por seus amigos, o diabo também compareceu, aproximando-se com uma aparência tão hedionda que não houve pessoa que, de medo, quase não perdesse a vida. Esse diabo levou-lhe a alma” – Foto: Reprodução / Dicionário Infernal
No plano, digamos, cultural, o levantamento de palavras relacionadas
ao mundo infernal irradiava a pretensão de classificar os elementos
ligados ao subterrâneo e sistematizar o emprego de certas fórmulas, com
vistas ao melhor proceder, em chave moral.
Como forma de convidar o internauta à leitura, vejamos alguns
exemplos curiosos. Para começar, uma anedota protagonizada pelo Bispo de
Hipona, no século 5: “Um dia, estando mergulhado em suas meditações,
Santo Agostinho viu passar diante de si um demônio que carregava um
livro enorme sobre os ombros. Ele parou e perguntou-lhe o que continha
esse livro. ‘É o registro de todos os pecados dos homens, respondeu o
demônio’” (p. 33).
Curiosamente, muitos deuses, homens e animais tomariam sua alma de
empréstimo aos entes malignos, de acordo com De Plancy. Por exemplo, “os
demonógrafos consideram (Baco) como o antigo chefe do sabá instituído
por Orfeu” (p. 119).
Deumus: “Divindade dos habitantes de Calicute, em Malabar. Essa
divindade, que não passa de um diabo adorado sob o nome de Deumus, porta
uma coroa, quatro chifres na cabeça e quatro dentes pontudos na boca,
que é imensa; tem nariz pontudo e recurvado, os pés são como patas de
galo, e segura entre suas garras uma alma que parece prestes a devorar” –
Foto: Reprodução / Dicionário Infernal
A respeito da coruja, tratar-se-ia de “pássaro de mau agouro (…)
misterioso porque busca a solidão, assombra os campanários, as torres e
os cemitérios. Seu pio é temido, porquanto apenas escutado em meio às
trevas” (p. 259). Em relação aos demônios, propriamente ditos, “certos
doutos afirmam que (…) se multiplicam entre si, como os homens; (…)
Hesíodo lhes confere uma vida de 680.400 anos. Plutarco, sem poder
conceber que alguém possa experimentar uma vida tão longa, reduziu-a
para 9.720 anos” (p. 283).
Haveria outros planos além do céu e do inferno? Talvez sim. Efland (2) seria
um “país ou ilha, reino das fadas e dos elfos. As fadas e os elfos, que
são os espíritos do Norte, às vezes raptam crianças e as levam a
Elfland para povoar esse país” (p. 316).
No livro também há espaço para vários homens considerados inimigos da
Igreja em seu tempo, como foi o caso de Galileu, afinal “sua teimosia
em querer conciliar, à sua maneira, a Bíblia e Copérnico, o fez perseguido pela Inquisição” (p. 405).
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