Leandro Karnal*
Existem
conceitos que se espalham e que usamos sem muita reflexão. Quando as
pessoas notam que existem oferendas no dia 2 de fevereiro para Iemanjá, dia de Nossa Senhora da Luz ou das Candeias, imediatamente classificam que esse seria um gesto de sincretismo, de elementos combinatórios entre a mãe de Jesus e a orixá dos mares. O mesmo poderia ser percebido em Santa Bárbara, tratada como Iansã no candomblé, ou São Jerônimo/Xangô ou São Jorge/Ogum.
O mesmo sentimento geral afirma que as combinações eram estratégias de
escravos que, impossibilitados de continuar seus cultos tradicionais,
disfarçaram o panteão africano com os canonizados católicos. Ir à Igreja do Senhor do Bonfim, lavar as escadas com água de cheiro louvando ao bom Jesus que acompanhava a agonia derradeira era, no fundo, um culto a Oxalá presente no branco das roupas das baianas e nas comidas de homenagem. Esse parece ser um consenso tão universal no Brasil
que se assemelha à ideia clássica da origem da feijoada: um prato com
restos do porco levados para a senzala e lá cozidos com o feijão-preto
enquanto os senhores brancos da Casa Grande tinham aproveitado o lombo e
o pernil. Como as entidades poderosas iorubas, a feijoada era uma
estratégia do possível para um grupo oprimido e violentado física e
espiritualmente.
A
ideia pareceu funcionar e foi bem repetida. A feijoada não é um prato
da senzala e não nasceu na colônia. O prato típico da mão de obra
escravizada é a farinha de mandioca com carne-seca. A feijoada é urbana
e, provavelmente, nasceu na capital do país de então, o Rio de Janeiro.
Com variantes expressivas, cozinhar partes do porco com feijão existe em
quase todo o mundo.
Voltemos ao sincretismo. O
conceito tem um problema: ele implica dizer que existiria uma religião
pura e original. Não há. Mitos combinados fazendo surgir uma espécie de
signo aberto no qual o Zé do Burro (a personagem do O Pagador de Promessas, de Dias Gomes) via Iansã e Santa Bárbara ao mesmo tempo, para horror do padre na obra.
Não existe uma religião original ou uma fonte absoluta. Explico-me. O Deus de Israel é fruto da fusão de uma entidade chamada El e outra denominada Iaveh
(e suas muitas variantes de escrita). Cada entidade era separada e
atingia mais os habitantes do norte ou do sul do corredor
sírio-palestino. Há abundantes evidências imagéticas e literárias de que
eram seres separados, com narrativas distintas, esposas, imagens
específicas e valores apartados. No exílio da Babilônia,
sacerdotes costuraram um processo que vinha aumentando fazia anos: a
fusão dos dois deuses em uma nova entidade nacional dos hebreus, cada
vez mais imaterial e única. Israel passou do politeísmo para a
monolatria e, muito mais tarde, para o monoteísmo. As narrativas foram
colocadas por escrito por um processo visível ainda nas linhas de
colagem da Bíblia. Existe o texto eloísta e o javista e
eles foram unificados de forma mais ou menos eficiente pela chamada
tradição sacerdotal. Isso explica algumas contradições notáveis do texto
bíblico, deixando ainda revelar dois seres completamente diferentes com
atributos desiguais.
E o demônio? Talvez seja a mais sincrética das criaturas. A serpente que provocou a queda do homem, a entidade que obtém de Deus
autorização para atormentar Jó e o ser que dialoga com Jesus no deserto
são completamente distintos. Porém, a narrativa cristã uniu todos como Lúcifer ou Satanás, aquele que sussurrava ações maléficas a Judas e que luta contra o Bem no Apocalipse. A costura de toda a ação malévola em um ser específico é um processo de intenso sincretismo.
Maria passou a ser cultuada em Éfeso, mesmo lugar do culto a Diana/Ártemis, uma entidade sempre virgem. A fusão de deusas-mãe do Crescente Fértil com a figura de Nossa Senhora foi bem documentada. Em alguns casos, transforma-se o lugar: o Partenon de Atenas, consagrado a outra virgem, Palas-Atena/Minerva, virou igreja de Nossa Senhora.
Dogmas marianos foram proclamados em Éfeso e o processo de construção
da imagem de Maria vai até o século 20 (dogma da Assunção). Nascer de
uma virgem é comum a Mitra e a Jesus. Ressuscitar é lembrado como
atributo de Osíris e Cristo.
Todos os deuses e
cultos do mundo são costuras de muitas tradições. Mesmo que alguns
religiosos fiquem um pouco chocados, heróis submetendo dragões (como São Jorge, São Marcelo de Paris ou Santa Margarida) não começaram com Game of Thrones. São mitos antigos e fortes. Como o arcanjo São Miguel pesa as almas em imagens medievais, Anúbis fazia isso há mais tempo no Egito. Tudo no campo do sagrado é feito de sobreposições, imbricações, fusões e mestiçagens.
Sob esse aspecto, tudo é sincretismo, inclusive aquele processo de criação de Deus ou de Maria.
Não existe uma religião original e pura ou uma fonte primária.
Religiões funcionam como cebolas com muitas camadas e, enfim, depois de
retiradas, inexiste uma essência primeira. Sincretismo é a base de todas
as culturas, não apenas de Iemanjá ou Xangô. É preciso ter esperança, esta sim, uma virtude pura e original.
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* Historiador brasileiro, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especializado em história da América.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-que-e-sincretismo,70003103640 27/11/2019
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