Manifestante diante de forças de segurança em
Providencia, Santiago Foto: Jorge Silva/Reuters
Para o coordenador de Relações Internacionais da
FESP-SP, onda de
protestos no continente
está quebrando alguns preceitos
Entrevista com
Moisés Marques, coordenador de Relações Internacionais da FESP-SP
Fernanda
Simas, O Estado de S.Paulo
A queda de Evo
Morales na Bolívia,
os protestos no Chile
e a invasão da embaixada venezuelana em Brasília como parte de um movimento
contra o governo de Nicolás
Maduro mostram que a premissa de que as insatisfações populares com
governos na América Latina estão ligadas a uma crise econômica nem sempre é
verdadeira.
"Vemos um descolamento entre performance econômica, digo
macroeconomia, e o encantamento ou desencantamento com o processo político.
Acreditávamos que se um país estava bem economicamente, o povo não ficava
descontente com o governo. Os casos latino-americanos desmentem um pouco
isso", explica o coordenador de Relações Internacionais da pós-graduação
da FESP-SP, Moisés Marques. Para Marques, a ligação entre os movimentos no
continente está na facilidade de se organizar movimentos e não necessariamente
num mesmo motivo ideológico.
A seguir, trechos da entrevista:
Há relação entre as crises vividas na América Latina?
Os casos latino-americanos são um pouco diferentes entre eles. Muita
gente fala que se vive uma onda de protestos no Equador, Chile, Venezuela,
Nicarágua. Cada país que você analisar tem um elemento. Temos sim uma
facilidade de se manifestar e isso vem desde a Primavera Árabe. A minha demanda
é parecida com a sua então saímos para as ruas. Isso aconteceu em vários países
do mundo. Mas na América Latina estamos quebrando com alguns preceitos. Vemos
um descolamento entre performance econômica, digo macroeconomia, e o
encantamento ou desencantamento com o processo político. Acreditávamos que se
um país estava bem economicamente, o povo não ficava descontente com o governo.
Como dizia James Carville, o estrategista de Clinton, "é a economia,
estúpido". Os casos latino-americanos desmentem um pouco isso.
Como explicar isso?
No caso da Bolívia e do Chile, por exemplo, a economia não vai mal, mas
a questão é 'o que significa a economia estar indo bem?'. Estamos olhando
indicadores normais de crescimento dos países, mas não para o crescimento da
desigualdade ou para as disparidades entre as populações dos países. Na Bolívia
e na Guatemala, você tem um recorte muito grande na questão indígena. Essa
população não tem recebido os benefícios do crescimento econômico, se
beneficiam de alguns programas sociais, é diferente. Na América Latina, temos
aqueles que se beneficiam do processo de crescimento e aqueles que começaram a
aproveitar alguns benefícios e apoiam lideranças mais populistas. Com a
facilidade das redes sociais, você vai ver rua de todos os tipos. Uma parte da
população na Bolívia apoia a derrubada do Evo e sai às ruas para comemorar, mas
quando desce o povo de El Alto, o Exército intervém porque são pessoas pró-Evo
que vão para as ruas com dinamite, não estão ali para brincar. Facilitar a ida
para as ruas também facilitou o embate.
Protesto em La Paz, capital da Bolívia Foto:
AIZAR RALDES/AFP
O elemento religioso tem peso nos conflitos?
Outra coisa perigosa que vemos hoje é a mistura de valores políticos e
religiosos. Na Bolívia isso ocorre com Luis Fernando Camacho, vemos isso na
Guatemala, na Costa Rica, e também na política externa brasileira. Estão
misturando valores e isso é perigoso desde Maquiavel. Isso é perigoso porque
você transporta valores morais e individuais para questões políticas. Na
Bolívia, 60% da população é indígena. Agora Jeanine Añez leva a bíblia para o
palácio, dizem que Pachamama (a mãe terra) está nas mãos de Deus. Isso é mexer
com questões enraizadas. Isso tende a polarizar ainda mais o processo. Estamos
nos aproximando do fundamentalismo e isso é ruim.
A derrubada de Evo na Bolívia dá munição para a queda de Maduro na
Venezuela?
No caso na Venezuela, existe uma crise institucional há muito tempo,
forte inflação e um governo que perdeu total a legitimidade. No caso da
Bolívia, existe uma série de erros grosseiros cometidos por Evo, de avaliação e
de interpretação. Ele perdeu o plebiscito e interpretou de outra forma. Além
disso, historicamente, na Bolívia os militares têm um papel de quebra
institucional. Há uma tradição de interferir militarmente no processo político.
No caso venezuelano, mesmo em 1958, quando derrubam o Marcos Pérez Jiménez, os
militares seguram o processo democrático. Em geral, a interferência de
militares é mais pró-democracia.
Como o sr. vê a invasão da embaixada venezuelana em Brasília?
Me parece uma coisa maluca, Guaidó tem pouca legitimidade na Venezuela,
fez uma aposta de alto risco que não pegou, mesmo quando há meses tentou o
envio de ajuda humanitária esperando que a população saísse em seu apoio. Boa
parte dos venezuelanos quer o Maduro fora do poder, mas não necessariamente o
Guaidó em seu lugar. Acredito que agora o que vemos é mais uma maneira de
aproveitar um momento de intervenção dos militares para Evo sair da presidência
e tentar linkar com uma onda pró-oposição nos países bolivarianos. Se for essa
a intenção de Guaidó será um grave erro de avaliação porque o Maduro pode até
cair, considerando que a economia deve encolher ainda mais esse ano na
Venezuela, mas isso não significa que Guaidó assumirá.
Apoiadores de Nicolás
Maduro e Juan Guaidó trocam socos na frente da embaixada
da Venezuela, em
Brasília Foto: Sergio Moraes/Reuters
Por que?
A oposição tanto na Bolívia quanto na Venezuela é fragmentada. (Carlos)
Mesa é de centro-direita por exemplo e teve apoio de grupos da esquerda porque
Evo se distanciou demais da sua base de apoio dentro do MAS. Agora, figuras que
não estavam dentro do processo eleitoral estão tentando aproveitar o vácuo de
poder e a situação é delicada. Nisso o caso venezuelano é semelhante. Você tem
figuras mais propositivas como o (Henrique) Capriles que diz 'vamos sentar e
construir uma frente de grupos opositores com propostas' e tem essas figuras
sem grande representatividade que se aproveitam do momento. Derrubar o Maduro é
relativamente fácil, mas o difícil é saber quem vai governar.
Como fica o Brasil nessa história?
Já tivemos política externa de tudo que é tipo, de integração pelo
regionalismo, independente, mas a atual é a da esquizofrenia, porque temos
posições dentro do governo muito distintas, posições inconciliáveis. Posições
normais são de respeito a Constituições. Qualquer democracia deveria respeitar
isso. Você não pode reconhecer processos desses, da autoproclamação de Guaidó como
presidente e até dessa senadora na Bolívia, porque dá brecha para o contrário
ocorrer. Historicamente, a política externa brasileira teve um alinhamento
muito forte com a carta da ONU, de não intervenção, respeito às instituições,
isso incluindo em governos militares.
Agora, a pergunta é: quem está falando pela política externa brasileira?
O Itamaraty, o presidente ou pessoas do círculo do presidente? Não sabemos
quem fala e há excesso de posições. É um desconforto imenso para o País
permitir a invasão a uma embaixada. Em tese, é uma invasão à Venezuela. Se cria
um problema diplomático por uma questão muito pequena num dia que se sedia os
Brics. Você vai falar que apoia o movimento por ser contra o autoritarismo com
China e Rússia aqui? A atitude institucional correta é retirar as pessoas e
pedir desculpas públicas à Venezuela. É preciso respeitar a instituição. Custa
acreditar que isso aconteceu.
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