quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Há um descolamento entre macroeconomia e insatisfação política na América Latina, diz professor


 
Manifestante diante de forças de segurança em Providencia, Santiago   Foto: Jorge Silva/Reuters
 
Para o coordenador de Relações Internacionais da 
FESP-SP, onda de protestos no continente 
está quebrando alguns preceitos

Entrevista com

Moisés Marques, coordenador de Relações Internacionais da FESP-SP 

Fernanda Simas, O Estado de S.Paulo

A queda de Evo Morales na Bolívia, os protestos no Chile e a invasão da embaixada venezuelana em Brasília como parte de um movimento contra o governo de Nicolás Maduro mostram que a premissa de que as insatisfações populares com governos na América Latina estão ligadas a uma crise econômica nem sempre é verdadeira. 

"Vemos um descolamento entre performance econômica, digo macroeconomia, e o encantamento ou desencantamento com o processo político. Acreditávamos que se um país estava bem economicamente, o povo não ficava descontente com o governo. Os casos latino-americanos desmentem um pouco isso", explica o coordenador de Relações Internacionais da pós-graduação da FESP-SP, Moisés Marques. Para Marques, a ligação entre os movimentos no continente está na facilidade de se organizar movimentos e não necessariamente num mesmo motivo ideológico. 

A seguir, trechos da entrevista:

Há relação entre as crises vividas na América Latina?
Os casos latino-americanos são um pouco diferentes entre eles. Muita gente fala que se vive uma onda de protestos no Equador, Chile, Venezuela, Nicarágua. Cada país que você analisar tem um elemento. Temos sim uma facilidade de se manifestar e isso vem desde a Primavera Árabe. A minha demanda é parecida com a sua então saímos para as ruas. Isso aconteceu em vários países do mundo. Mas na América Latina estamos quebrando com alguns preceitos. Vemos um descolamento entre performance econômica, digo macroeconomia, e o encantamento ou desencantamento com o processo político. Acreditávamos que se um país estava bem economicamente, o povo não ficava descontente com o governo. Como dizia James Carville, o estrategista de Clinton, "é a economia, estúpido". Os casos latino-americanos desmentem um pouco isso. 

Como explicar isso?
No caso da Bolívia e do Chile, por exemplo, a economia não vai mal, mas a questão é 'o que significa a economia estar indo bem?'. Estamos olhando indicadores normais de crescimento dos países, mas não para o crescimento da desigualdade ou para as disparidades entre as populações dos países. Na Bolívia e na Guatemala, você tem um recorte muito grande na questão indígena. Essa população não tem recebido os benefícios do crescimento econômico, se beneficiam de alguns programas sociais, é diferente. Na América Latina, temos aqueles que se beneficiam do processo de crescimento e aqueles que começaram a aproveitar alguns benefícios e apoiam lideranças mais populistas. Com a facilidade das redes sociais, você vai ver rua de todos os tipos. Uma parte da população na Bolívia apoia a derrubada do Evo e sai às ruas para comemorar, mas quando desce o povo de El Alto, o Exército intervém porque são pessoas pró-Evo que vão para as ruas com dinamite, não estão ali para brincar. Facilitar a ida para as ruas também facilitou o embate. 

Protesto em La Paz, capital da Bolívia Foto: AIZAR RALDES/AFP

O elemento religioso tem peso nos conflitos?
Outra coisa perigosa que vemos hoje é a mistura de valores políticos e religiosos. Na Bolívia isso ocorre com Luis Fernando Camacho, vemos isso na Guatemala, na Costa Rica, e também na política externa brasileira. Estão misturando valores e isso é perigoso desde Maquiavel. Isso é perigoso porque você transporta valores morais e individuais para questões políticas. Na Bolívia, 60% da população é indígena. Agora Jeanine Añez leva a bíblia para o palácio, dizem que Pachamama (a mãe terra) está nas mãos de Deus. Isso é mexer com questões enraizadas. Isso tende a polarizar ainda mais o processo. Estamos nos aproximando do fundamentalismo e isso é ruim. 

A derrubada de Evo na Bolívia dá munição para a queda de Maduro na Venezuela?
No caso na Venezuela, existe uma crise institucional há muito tempo, forte inflação e um governo que perdeu total a legitimidade. No caso da Bolívia, existe uma série de erros grosseiros cometidos por Evo, de avaliação e de interpretação. Ele perdeu o plebiscito e interpretou de outra forma. Além disso, historicamente, na Bolívia os militares têm um papel de quebra institucional. Há uma tradição de interferir militarmente no processo político. No caso venezuelano, mesmo em 1958, quando derrubam o Marcos Pérez Jiménez, os militares seguram o processo democrático. Em geral, a interferência de militares é mais pró-democracia. 

Como o sr. vê a invasão da embaixada venezuelana em Brasília?
Me parece uma coisa maluca, Guaidó tem pouca legitimidade na Venezuela, fez uma aposta de alto risco que não pegou, mesmo quando há meses tentou o envio de ajuda humanitária esperando que a população saísse em seu apoio. Boa parte dos venezuelanos quer o Maduro fora do poder, mas não necessariamente o Guaidó em seu lugar. Acredito que agora o que vemos é mais uma maneira de aproveitar um momento de intervenção dos militares para Evo sair da presidência e tentar linkar com uma onda pró-oposição nos países bolivarianos. Se for essa a intenção de Guaidó será um grave erro de avaliação porque o Maduro pode até cair, considerando que a economia deve encolher ainda mais esse ano na Venezuela, mas isso não significa que Guaidó assumirá. 

 
Apoiadores de Nicolás Maduro e Juan Guaidó trocam socos na frente da embaixada 
da Venezuela, em Brasília Foto: Sergio Moraes/Reuters

Por que?
A oposição tanto na Bolívia quanto na Venezuela é fragmentada. (Carlos) Mesa é de centro-direita por exemplo e teve apoio de grupos da esquerda porque Evo se distanciou demais da sua base de apoio dentro do MAS. Agora, figuras que não estavam dentro do processo eleitoral estão tentando aproveitar o vácuo de poder e a situação é delicada. Nisso o caso venezuelano é semelhante. Você tem figuras mais propositivas como o (Henrique) Capriles que diz 'vamos sentar e construir uma frente de grupos opositores com propostas' e tem essas figuras sem grande representatividade que se aproveitam do momento. Derrubar o Maduro é relativamente fácil, mas o difícil é saber quem vai governar. 

Como fica o Brasil nessa história?
Já tivemos política externa de tudo que é tipo, de integração pelo regionalismo, independente, mas a atual é a da esquizofrenia, porque temos posições dentro do governo muito distintas, posições inconciliáveis. Posições normais são de respeito a Constituições. Qualquer democracia deveria respeitar isso. Você não pode reconhecer processos desses, da autoproclamação de Guaidó como presidente e até dessa senadora na Bolívia, porque dá brecha para o contrário ocorrer. Historicamente, a política externa brasileira teve um alinhamento muito forte com a carta da ONU, de não intervenção, respeito às instituições, isso incluindo em governos militares. 

Agora, a pergunta é: quem está falando pela política externa brasileira? O Itamaraty, o presidente ou pessoas do círculo do presidente? Não sabemos quem fala e há excesso de posições. É um desconforto imenso para o País permitir a invasão a uma embaixada. Em tese, é uma invasão à Venezuela. Se cria um problema diplomático por uma questão muito pequena num dia que se sedia os Brics. Você vai falar que apoia o movimento por ser contra o autoritarismo com China e Rússia aqui? A atitude institucional correta é retirar as pessoas e pedir desculpas públicas à Venezuela. É preciso respeitar a instituição. Custa acreditar que isso aconteceu.
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