Juremir Machado da Silva*
Filmes mostram o quanto podemos ser perversos
Vi “Parasita”, filme do sul-coreano Bong Joon-ho. Fiz
isso depois de ter assistido ao “Coringa”. São duas carnificinas.
Sempre me questiono humildemente: por que sair de casa sábado à noite
para ver uma mortandade? Qual a razão para contemplar alguém esfaqueando
pessoas ainda que seja numa ficção? Não encontrei a resposta.
Divertimento não é. Será, então, obra de arte? Ou uma contribuição da
indústria do cinema para a reflexão sobre os dramas sociais? Nunca me
convenci plenamente das boas intenções dos gigantes do entretenimento.
“Parasita” e “Coringa” são excelentes filmes. Tão bons quanto
repugnantes e exagerados. Ambos parecem dizer: quem planta humilhação,
colhe tragédia. Um dia as pessoas se revoltam. Até aí tudo bem, ou seja,
como discordar? O problema é o método demonstrativo. A primeira parte
de “Parasita” tem algo de comédia sem qualquer sentido. A segunda parte,
porém, apresenta-se como um pesadelo interminável. Fechei os olhos
algumas vezes. Acabei desistindo ou teria de dormir para não ver tanto
sangue derramado em vão. “Coringa” parece justificar melhor o
ressentimento que move o assassino, o vilão que se torna “herói”.
Aí o leitor se pergunta: de que tipo de filme eu realmente
gosto? Darei um exemplo recente: “Tabacaria”. Gosto de histórias com
altos e baixos, momentos de ódio e de amor, de ressentimento e de
ternura, de violência e de paz, de desespero e de esperança. Tenho
dificuldades com enredos em que a perversidade corre solta de ponta a
ponta. Não estou criticando “Parasita”. Limito-me a confessar a minha
incapacidade para digerir tanto sangue em apenas duas horas. Acostumadas
a doses cavalares de violência, é possível que as pessoas exijam dos
filmes quantidades sempre maiores de execuções explícitas e de maldade
visceral.
Uma obra para ter alguma chance de sucesso precisa contemplar
cinco fatores: uma boa história, uma boa linguagem, produzir um
descobrimento (destapar, “desocultar” alguma coisa), gerar uma diferença
(diferencial) e captar o espírito da época. Essa é a fórmula do
sucesso: S = DDn, sendo “s” sucesso, “d” descobrimento e “d” diferença. Quanto mais descobrimento e diferença, mais sucesso.
Mas se não capturar o ar do tempo, o espírito da época, não decola.
“Parasita” e “Coringa” contam boas histórias, com linguagens afiadas (a
caricatura da primeira parte de “Parasita”), descobrem o ressentimento
social prestes a explodir e geram diferença: a empatia dá-se com o
“vilão”, com o agressor até ali agredido.
Eis o espírito do tempo. Não é mais a ordem defendida por Batman que
mobiliza os sentimentos, mas a desordem do acerto de contas do Coringa
que acorda um desejo enviesado de justiça. Em “Parasita”, o encontro da
família desempregada, vivendo num porão, com a família rica da mansão
anuncia um desencontro de imaginários fadado a uma fricção sem retorno
possível. Nem tudo é intencional. O acaso faz o resto. E o roteiro. Acho
um tanto fácil mandar esfaquear um monte de gente.
Levo uma semana para me refazer de filmes violentos. Por sorte,
esqueço quase tudo. Quando saio do cinema me acontece de não me lembrar
se já jantei. Mais lento é o esquecimento das tantas facadas. Noto que
para muitos não faz cócegas.
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* Escritor, tradutor, jornalista, radialista e professor universitário brasileiro.
Foi coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Fonte: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/cinema-que-revela-o-pior-1.383318 28/11/2019
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