Escritor fecha o ciclo de palestra do Fronteiras do Pensamento
deste ano
"Quando não há mais ideias e utopias, o que resta: o cuidado de
si visto por Michel Foucault. O comunismo morreu. Não há mais grandes causas.
Só resta cuidar do próprio umbigo. Aí entra a terceira etapa, a felicidade. Se
só resta o meu umbigo, preciso gozar ou encontrar a sabedoria no budismo, no
estoicismo, no epicurismo ou no taoísmo, o que me permitirá viver bem comigo. É
uma grande bobagem. A felicidade é impossível".
Casado há 22 anos com “uma linda mulher”, como faz questão de enfatizar, pai
de três filhas “maravilhosas”, ex-ministro da Educação da França, autor de 70
livros, traduzido em 45 países, Luc Ferry, 68 anos, se vê como um liberal
social que detesta os centristas como Emmanuel Macron, já votou no socialista
Michel Rocard, mas se considera, antes de tudo, gaullista, republicano de
direita, liberal em economia.
Convidado do Fronteiras do Pensamento, nesta entrevista, fala do “segundo
humanismo” e da revolução do amor”. Afirma que nada é mais idiota do que a
ideia de felicidade.
Caderno de Sábado – A democracia liberal tem futuro?
Luc Ferry – Ela triunfa por toda parte. Se comparamos com
os anos 1930, está milhares de vezes melhor hoje. Os países do leste europeu,
antes comunistas, viraram democracias. O Brasil é uma democracia. Bolsonaro foi
eleito. Trump também. A democracia só não vence onde predomina o Estado
Islâmico. O problema é que a globalização produz excluídos. São eles que
engrossam as fileiras da extrema esquerda e da extrema direita. A saída, porém,
não é o centrismo, nem trocar o debate esquerda/direita por centro versus
extremismos. A globalização produz um efeito antidemocrático, mas mesmos os
líderes de extrema-direita são eleitos democraticamente.
CS – Como fazer para superar esse efeito nefasto?
Ferry – Sem demagogia, o problema é que o mercado se tornou
mundial, mas a política continua local. Google, Amazon, Facebook, Apple e
Microsoft e são mais poderosos que muitos Estados. Os gigantes chineses –
Baidu, Alibaba, Tencent et Xiaomi – são muitos fortes. Os executivos dessas
empresas têm mais poder que muitos chefes de Estado. A solução, contudo, ao
contrário do que pretendem alguns, não é o retorno à nação para que nossas
elites tenham influência. A moeda nacional não dará um poder real. O Brexit faz
parte dessa ilusão nacionalista. É uma idiotice compreensível. Será necessário
encontrar soluções dentro da própria globalização em curso.
CS – O filme “Coringa” mostra um sistema que produz humilhação e
colhe tragédia, gera exclusão e resulta em ressentimento e fosso social.
Ferry – O capitalista cria gente humilhada e também gente
muito rica. Ninguém faz melhor. Os franceses de hoje são três mais ricos que os
de 1950. A expectativa de vida aumentou 40 anos desde 1900. A globalização
liberal produz liberdade e riqueza, mas também sentimento de abandono, como a
semente geneticamente modificada levada pelo vento que escapa ao controle dos
pesquisadores. Isso, repito, nutre as ideologias extremistas.
CS – Há espaço para a felicidade nesse quadro da globalização?
Férry – A ideia de felicidade é a mais idiota, a mais
absurda de toda a história da humanidade. Isso vem da psicologia positiva
norte-americana dos anos 1980. A autoajuda tomou conta do mundo. A sua origem
está numa sequência devastadora: desconstrução da transcendência, que começa
com Schopenhauer e passa pela filosofia do martelo de Nietzsche, que quebra os
ídolos, Heidegger e os filósofos da suspeita, Marx, Freud. O mundo, sem
transcendência, torna-se materialista, numa imanência radical, tendo Spinoza
como pensador. Quando não há mais ideias e utopias, o que resta: o cuidado de
si visto por Michel Foucault. O comunismo morreu. Não há mais grandes causas.
Só resta cuidar do próprio umbigo. Aí entra a terceira etapa, a felicidade. Se
só resta o meu umbigo, preciso gozar ou encontrar a sabedoria no budismo, no
estoicismo, no epicurismo ou no taoísmo, o que me permitirá viver bem comigo. É
uma grande bobagem. A felicidade é impossível. Podemos ter momentos de alegria.
Desde que se ama alguém, que se tem filhos, a felicidade se torna impossível,
pois há preocupações. A “felicização” do mundo é uma mercadoria que se vende
bem: livros, aplicativos, sem contar o coach que ganha dinheiro de
quase todo mundo.
CS – O coach é um charlatão?
Ferry – Claro, quase estelionatário, impostores
intelectuais, vendendo exercícios espirituais para enfrentar a morte e ser
feliz. A verdadeira definição da felicidade é justo a possibilidade de sentir
alegria. Não é algo estável ou que será permanente. O resto é pura
falsificação.
CS – O que colocar no lugar da felicidade?
Ferry – Estou escrevendo um livro sobre isso: “Nem
decrepitude nem morte: a sabedoria do segundo humanismo”, o do amor. Hoje, quem
se preocupa com os outros, faz isso por se sentir bem. Altruísta por egoísmo.
Utilitarista. O primeiro humanismo, o republicano, defendia a liberdade e os
direitos humanos, mas ficou refém do nacionalismo e do cientificismo. O segundo
humanismo é pós-Nietzsche. Existem quatro respostas para a pergunta sobre o
sentido da vida: para os gregos, a vida boa é a da harmonia de si com o cosmos;
para as religiões, a vida boa é da harmonia de si com Deus; para o primeiro
humanismo, a vida boa é da harmonia de si com a humanidade inteira; quarta
resposta, a tríada, desconstrução-cuidado de-si-felicidade. Proponho uma quinta
resposta a partir de duas revoluções, a invenção do casamento por amor, que
sacraliza o ser humano, e o aumento do tempo de vida. O sagrado é aquilo pelo
que aceito morrer. Antes, pela pátria, por Deus, por uma ideologia. Hoje, só
por quem se ama. Por quem amo ou por quem poderia ou poderei amar, o meu
próximo.
CS – Seremos imortais?
Ferry – Sempre seremos mortais, mas viveremos 150 anos ou
mais. Estudei biologia durante três anos. Sei do que estou falando. A
longevidade vai mudar tudo. Talvez cheguemos a 200 anos. Já transformamos
células senescentes em células-tronco. Muitas doenças serão controladas. A
questão será mais de manter a liberdade na velhice. Haverá tempo para amar.
CS – Já o criticaram por romantismo.
Ferry – Sou o primeiro dos modernos. A revolução do amor é
moderna. Quando eu era jovem, mulheres precisavam de autorização do pai para
casar. Os casamentos de conveniência dominam o mundo não ocidental. O casamento
por amor engendra o divórcio. A tradição não precisava disso, pois não sentir
amor não era razão para separação. E havia bordeis, amantes e traições.
CS – A civilização ocidental está em perigo?
Ferry – O islamismo radical vai provocar ainda muito
estrago, mas não estamos na Alemanha nazista. Não haverá uma autodestruição.
Francis Fukuyama tinha razão sobre o fim da história. Podemos ter retrocesso,
mas não se fará melhor do que a democracia, que poderá ser aperfeiçoada. Mesmo
nos regimes ditos iliberais, a democracia resiste no direito ao voto. Putin,
Orban, Trump e Marine Le Pen não querem acabar com as eleições. O problema é
que na democracia se pode votar em idiotas. Faz parte do jogo.
CS – Há uma ameaça individualista?
Ferry – Ao contrário. O individualismo foi uma vitória
contra a tradição. O casamento por amor resulta da liberdade individual. É
emancipação. Nunca o mundo foi tão altruísta quanto hoje. A filantropia nunca
arrecadou tanto. Não estamos colocando o vazio no lugar dos valores. É o amor
que rege as escolhas. Tivemos duas guerras mundiais devastadoras. Não queremos
mais isso. Nunca tivemos um mundo tão pleno de possibilidades positivas.
CS – O iluminismo não se apagou?
Ferry – O primeiro humanismo apagou-se. O segundo está aí.
Pensemos na emancipação das mulheres e dos homossexuais. Era inimaginável há
menos de 50 anos. Em 1980, homossexualismo era visto como doença pela
Organização Mundial da Saúde. Sociólogos ainda pensam muito negativamente, mas
estão em decadência. Pierre Bourdieu morreu. Esse velho marxismo expirou.
CS – Ele dizia que não era marxista.
Ferry – Era marxista chique. Não era um Althusser. As
religiões ideológicas da salvação terrena acabaram. O liberalismo ganhou.
Victor Hugo dizia que produzir riquezas é uma coisa; saber reparti-la, outra. A
Inglaterra sabia produzir, mas não distribuir. O capitalismo sabe produzir
riquezas. É preciso saber distribuí-las. O comunismo pretendia saber repartir,
porém não conseguia produzir. O modelo socialdemocrata europeu é o que melhor
dá conta desse desafio. O Estado deve garantir meios de promoção social. Eu vim
de uma família muito modesta e ascendi pelo esforço e pela escolarização.
Estados oriundos do autoritarismo agarram-se ao ultraliberalismo. É preciso
ajudar a criar oportunidades para todos.
CS – A tecnologia não está afetando esse modelo?
Ferry – Está ajudando. Vamos resolver o problema do câncer.
A tecnologia tem um papel nisso. Não se deve crer em livros como o de Yuval
Harari. É o livro mais idiota que li nos últimos 20 anos. O trabalho não vai
acabar. Quantas profissões sumiram de 1850 para cá. E quantas surgiram? A
inteligência artificial vai gerar mais atividades do que extinguir. Haverá,
claro, um tempo de transição e de formação para essa mutação.
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