DAVID COIMBRA
Pobre tem de ser bom. Os cachorros brasileiros nos ensinam isso. Li uma vez, na National Geographic, que o bicho mais inteligente do mundo é o vira-lata brasileiro. Não me surpreendeu. O vira-lata brasileiro tem de enfrentar contingências diárias para sobreviver. Tem de se adaptar, e se adapta.
Aqui não existe vira-lata. Eu, ao menos, nunca vi um cachorro numa rua do nordeste americano que não estivesse acompanhado do dono. No inverno, os cachorros andam de meias, porque o sal que é espalhado nas calçadas para diluir a neve pode lhes queimar as patinhas. São cachorros mimados, esses cachorros americanos.
Os brasileiros, não. Cachorros brasileiros vivem a vagabundear sozinhos pela rua e dependem da simpatia do transeunte para não levar um pontapé e da do dono do açougue para ganhar um osso. Essa necessidade de comover os humanos fez com que os cachorros brasileiros desenvolvessem eficazes métodos de despertar compaixão. Eles abanam o rabo e fazem uma cara de tristeza que transforma em patê os mais empedernidos corações. É a evolução da espécie. Darwin explica.
Há cientistas que suspeitam que os filhotes de mamíferos, inclusive os dos humanos, são bonitinhos para cumprir essa função evolutiva. Sendo fofinhos, eles enternecem eventuais adultos predadores.
Tudo pela preservação.
Socialmente, o homem segue essa mesma lógica da natureza: quando em desgraça ou em desvantagem, o homem é humilde, simpático, risonho, parece boa gente. As pessoas se admiram: veja esse povo sofrido, que, ainda assim, canta e mantém o sorriso no rosto. Ora, ele canta e mantém o sorriso no rosto porque precisa. Porque tem de despertar a boa vontade alheia, da qual depende. Tornado poderoso, aí sim, aí é que ele mostrará quem na verdade é.
Mas alguns grandes homens, ungidos pelo poder, alguns poucos demonstram que são verdadeiramente grandes, demonstrando humildade. Um dos mais inspiradores foi nada menos do que dono do mundo: Marco Aurélio, imperador romano no segundo século depois de Cristo.
Esse Marco Aurélio era homem de letras e de filosofia, mas também de guerra. Durante os combates contra os povos germânicos, nas geladas fronteiras do império, ele se recolhia à sua tenda e se punha a registrar ideias sobre a existência. São pensamentos de comovente delicadeza. Li Marco Aurélio ainda guri, quando fiz a coleção Os Pensadores, da Abril Cultural, e ainda o leio, em certos momentos da vida.
Marco Aurélio foi o filósofo da aceitação. "Acontecer-me isso não é uma desgraça", dizia,"mas suportá-lo corajosamente é uma felicidade".
Marco Aurélio era o que hoje talvez se chamasse de holístico. Acreditava no que designava como "a natureza do todo" e proclamava para o universo: "Tudo o que harmoniza contigo, harmoniza comigo. Nada que para ti esteja em tempo é muito cedo ou muito tarde para mim".
Para ele, a morte não era "a angústia de quem vive", que era para Vinicius. Ao contrário, Marco Aurélio ensinava: "Assim como a mutação e a dissolução dos corpos abrem caminho para outros corpos condenados a morrer, assim almas que deixam o corpo depois da existência terrena transmutam-se e difundem-se na inteligência seminal do universo e abrem caminho para novas almas. Tu, que exististe como parte, desaparecerás naquilo que te produziu. Vive esse pequeno espaço de tempo em conformidade com a natureza e encerra contente a tua jornada, como a azeitona que cai da árvore quando madura, abençoando a natureza que a produziu e agradecendo à árvore onde cresceu".
Neste tempo, em que o Brasil assiste ao espetáculo da dissolução moral dos poderosos, é saudável saber que nem todo o poder do mundo é capaz de tornar mau quem aprendeu a ser bom.
Texto originalmente publicado em 6 de março de 2015
* Jornalista, formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), é comentarista da Rádio Gaúcha e colunista do jornal Zero Hora, de Porto Alegre (RS).
Imagem da Internet
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=dbdc7623218eccb02a323e342b924f5c
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