Falta o sentido de pertença a uma humanidade comum e a busca de uma solução inspirada por um sentido de revelação, que a Páscoa nos recorda, e que vincula os crentes, inevitavelmente, a uma verdade integral que suplanta a lógica dos factos.
Num opúsculo do tempo da II Guerra Mundial, Romano Guardini dizia que a realidade do mundo contemporâneo pode ser percecionada de três perspetivas distintas. A primeira é a dos acontecimentos factuais, a segunda a do mundo das ideias e a terceira a dos que orientam a sua visão do real a partir de um sentido de verdade integral. No combate brutal que se vivia, Guardini assinalava os limites do materialismo redutor, do idealismo ativista que lançava o véu das narrativas ideológicas antagonistas sobre o decurso dos eventos e concluía que faltava a orientação por uma verdade integral ancorada num espírito de revelação. Vivemos nesta Páscoa um tempo de repetição, que não se pode repetir. Conscientes dos erros do passado, o movimento da decisão política não consegue libertar-se do sonambulismo de resultados trágicos do passado. É certo que os instrumentos ao dispor das sociedades são muito diferentes, a informação dissemina-se à fração de segundo e a sua escala é todo o globo, a desinformação – que sempre existiu – aumenta de intensidade. E todavia, o sofrimento é idêntico e a escala do terror sugere uma repetição. Quatro milhões de refugiados ucranianos, imagens tremendas de tortura que recordam o pior de conflitos anteriores. E ao mesmo tempo, idêntica é a hesitação dos decisores políticos, com a discussão ancorada na lógica das diferenças nacionais, que esquece que há muito mais em jogo do que Berlim, Paris ou Budapeste. Falta o sentido de pertença a uma humanidade comum e a busca de uma solução inspirada por um sentido de revelação, que a Páscoa nos recorda, e que vincula os crentes, inevitavelmente, a uma verdade integral que suplanta a lógica dos factos e o combate das ideias.
Escreveu Nietzsche no final da guerra franco-alemã de 1870, que uma grande vitória no campo de batalha constituía um grande perigo se declinada em modelo cultural. Manifestava-se nessa altura contra a xenofobia cultural reinante no recém-unificado império alemão que via na vitória alemã a superioridade da sua cultura face à França. De novo, no final da II Guerra Mundial, o escritor alemão Thomas Mann, que do exílio combateu a máquina ideológica do nazismo, escreveu em defesa da desvinculação da vitória aliada de uma potencial demonização da tradição cultural alemã. O que hoje vivemos de demonização da tradição cultural russa é exemplo, de novo, de uma contemporaneidade que perdeu o entendimento profundo das coisas, a favor de narrativas simplistas e superficiais. É certamente mais fácil banir um programa de Stravinsky do que cancelar importações de gás russo. A força do cancelamento de programas de literatura russa é a força do espantalho. Não tem nenhuma. A cultura é também um modo de afirmação estratégica, mas pode ser utilizada como arma de guerra ou instrumento de paz.
O que hoje vivemos de demonização da tradição cultural russa é exemplo, de novo, de uma contemporaneidade que perdeu o entendimento profundo das coisas, a favor de narrativas simplistas e superficiais.
Os textos fundacionais das tradições gregas e judaicas expuseram a imbricação do conflito e da cultura. Na Teogonia (vv. 14-26), Hesíodo distingue o mau conflito, associado com Éris, a produtora da discórdia e da dissolução da comunidade, do bom conflito, associado à reunificação dos elos sociais através do sacrifício. Esta mesma distinção entre o conflito disruptivo e o produtivo encontra-se expresso em vários textos da Bíblia, sendo as guerras com a Babilónia ou com o Egito exemplo do primeiro tipo de conflito e o sacrifício de Isaac do segundo. Nesta dimensão mítico-poética, o conflito resulta da tensão entre o domínio social e humano e normas transcendentais, tensão esta que é resolúvel, em última instância, através de práticas rituais. Uma outra estratégia identifica o conflito com a agressividade, mais especificamente a inclinação biológica do ser humano para agir violentamente, como ocorre em abordagens tão diversas, como o pensamento liberal de Thomas Hobbes, a teoria cultural de Freud ou até mesmo a análise comportamental de Eibl-Eibesfelt. Neste contexto, a cultura figura como um conjunto externo de regras repressivas que age para controlar a biologia, sobretudo olhando ao que estes autores consideram a ‘violência natural’ do ser humano. Assim, o trabalho cultural ganha uma dimensão corretora daquela que seria uma interação conflituosa com uma natureza essencialmente violenta.
Um sinal significativo de mudança conceptual é notório nas transformações ocorridas na sociologia do início do século XX. Em 1918, na conferência intitulada “O conflito da cultura moderna”, Georg Simmel define o conflito como uma estrutura sociogenética no seio da cultura. A cultura não é mais observada como um mecanismo repressivo, como o corretivo de uma natureza “imperfeita”, mas antes como marcando o processo de sociabilização que integra a diferença. Desta forma, seja sob a forma de um mecanismo produtivo e criativo, conducente à produção artística, seja sob a forma de uma ação perturbadora como a guerra, o conflito está intimamente associado ao trabalho da cultura. A obra de Simmel é revolucionária ao sugerir que a cultura é estruturada pela negociação da diferença – e não como processo de afirmação da identidade singular, como defendiam os nacionalismos – e que parte deste processo não terá, sucesso, conduzindo a discórdias violentas.
Esta guerra será, como todas as outras, também um conflito de culturas. Menos violenta que o conflito armado, a guerra de culturas permanece por mais tempo, é mais sediciosa e de impactos mais fortes. Podemos ser impotentes para travar a guerra do gás, do petróleo, das armas, mas somos decisores individuais e coletivos no que à guerra das culturas diz respeito. E é neste campo que podemos construir a paz.
* Reitora da Universidade Católica Portuguesa desde 2016. Professora Catedrática de Estudos de Cultura da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e é Mestre em Estudos Alemães pelas mesmas instituições, doutorando-se em Estudos Alemães na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, da qual foi Diretora entre 2005 e 2012.
Fonte: https://pontosj.pt/especial/impactos-culturais-de-uma-guerra-proxima/
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