POR Rita Grassi*
Desculpem o atraso, mas a vida está intensa. Muito trabalho, muitos estudos e muitas indagações internas. Sim, indagações, questionamentos sobre a minha identidade real, sobre o Self (como se diz em inglês). Como disse na última coluna, estou fazendo uma disciplina no mestrado em Teologia, que é lecionada por um monge budista e tem como objetivo nos conduzir a uma prática de autoquestionamento ou auto-indagação (livre tradução para self-inquiry). As leituras para esta disciplina têm sido bússolas eficientes nesse processo de reconhecimento e, até mesmo, de reconstrução da nossa identidade, principalmente na conscientização de camadas relativas à questão do corpo, que envolvem gênero e raça. Compartilho, aqui, um pouco dessa inquietude.
Nasci e cresci no Brasil, onde sempre fui considerada branca. Só quando morei fora, na França e nos Estados, que me dei conta de que não sou tão branca quanto pensava. Sou considerada Latina e minha cor é de definição difícil para eles. Até que um dia, meu afilhado francês perguntou para a mãe por que eu era marrom. Aqui em Nova Iorque, as pessoas falam espanhol comigo nas ruas e, em alguns lugares, percebo que sou tratada de forma diferente. É um lugar estranho para estar, porque posso me identificar tanto com algumas das descrições de Franz Fanon sobre como é ser um homem preto em uma sociedade branca, quanto com a ideia de Resmaa Menakem de que o medo do supremacista branco está enraizado em nossos corpos. Como se eu fosse, ao mesmo tempo, o sujeito e objeto dessa racialização.
Tenho total empatia quando Fanon diz que essa é “uma construção lenta do meu eu como um corpo em um mundo espacial e temporal […]. Não é imposta a mim; é sim uma estrutura definitiva do meu eu e do mundo — definitiva, porque cria uma dialética genuína entre meu corpo e o mundo” (FANON, 1967, p. 47). É assim que sempre me senti crescendo em uma sociedade, machista, misógina e orientada para o corpo e é assim que me sinto vivendo em uma sociedade extremamente racista, como a norte-americana. Além da minha cor de pele, que não é realmente um problema para mim, ter que lidar com o estereótipo da “mulher brasileira” é o mais difícil. Somos frequentemente consideradas como objetos sexuais, muitas vezes pelos mesmos homens que são discriminados pela supremacia branca. E é aí que começa a questão do gênero.
De acordo com bell hooks,
o patriarcado é um sistema político-social que insiste que os machos são inerentemente dominantes, superiores a tudo e a todos considerados fracos, especialmente as mulheres, e dotados do direito de dominar e governar sobre elas e manter esse domínio através de várias formas de terrorismo psicológico e violência (HOOKS, 2005, p. 17).
Na minha experiência, ser considerada e às vezes usada como objeto é um dos piores e violentos sentimentos. A sensação de baixa autoestima e de que não importa o que façamos – podemos até ser PhD na Sorbonne -, isso nunca vai mudar. Nas palavras de Simone de Beauvoir, “o macho vê ela (nós) essencialmente como um ser sexual; para ele, ela é (nós somos) sexo” (DE BEAUVOIR, 2011, p. 6). Parece que nunca vamos provar que somos mais do que nossos corpos e que somos donas de nossos corpos, eles não estão aqui para serem usados por ninguém além de nós mesmas. Por outro lado, quando Simone de Beauvoir diz que nos tornamos mulheres, me vejo sendo aprisionada nesse papel, nessa feminilidade que foi construída por essa mesma sociedade patriarcal que homens e mulheres ajudam a sustentar.
Dito isso, tenho que admitir que concordo com Maurice Merleau-Ponty quando diz que: “a percepção externa e a percepção do próprio corpo variam em conjunto porque são as duas faces de um mesmo ato”. (MERLEAU-PONTY, 1958, p. 237). Minha experiência do mundo e meu processo de auto-investigação não são separados, alienados um do outro. Eu não poderia experimentar o mundo sem meu corpo, meus sentidos, e meus sentimentos. Sim, meus sentimentos e emoções estão profundamente ligados ao meu corpo, aos sentimentos de dor e alívio do meu corpo. O problema é quando trato o mundo externo e seus esquemas como maiores que meu mundo interior, minha experiência interior.
O que tem sido para mim uma ótima e nova maneira de experimentar meu corpo é quando estou em relação com a natureza, com as plantas. Olhar para a planta e vê-la florescendo, desabrochando, secando e morrendo, como um processo que confia nos ciclos da natureza. Enquanto isso, ela permanece sólida em sua natureza interior, em seu ser planta. Ela apenas é. Pode ser ferida e não ser cuidada, não ser protegida por aqueles que deveriam fazê-lo, mas sua essência de ser planta não muda. Se ainda houver um pedacinho dela aterrado na terra, uma gota d’água e um raio de sol, ela voltará a crescer, e de novo e de novo…
Da mesma forma, precisaremos despertar nossa experiência do mundo como nos parece na medida em que estamos no mundo através de nosso corpo, e na medida em que percebemos o mundo com nosso corpo. Mas, assim, refazendo o contato com o corpo e com o mundo, também redescobriremos a nós mesmos, pois, percebendo como fazemos com nosso corpo, o corpo é um eu natural e, por assim dizer, o sujeito da percepção. (MERLEAU-PONTY, 1958, p. 239).
Tento voltar a esse eu natural que muitas vezes experimentei na minha infância, na fazenda dos meus avós. Tento me deixar levar e ter minha mente e corpo focados, com espanto, curiosidade e encantamento, em cada sensação e em cada detalhe que a natureza está me oferecendo. Busco me relacionar com ela, encarná-la, aprender com ela. Minha experiência do corpo passa a ser uma experiência dos sentidos, que incluem a mente, o espírito e a energia que o cerca. Abro meu coração para esta experiência e, apesar de tudo, confio.
* Doutoranda em Sciences Religieuses pela École Pratique des Hautes Études- EPHE (Paris Sciences et Lettres), Mestra em em Ciências da Religião pela PUC-Minas, Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estácio de Sá – RJ. Objetos de pesquisa: Diálogo Intercultural, Inter-religioso e Interconvicções, Pluralismo Religioso, a obra de Raimon Panikkar, Hinduísmo (Vedanta Advaita) e Cristianismo. É membro do Grupo de Pesquisa REPLUDI (Religião, Pluralismo e Diálogo) do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-Minas.
Referências
De Beauvoir, Simone. O Segundo Sexo. Nova Iorque, NY: Vintage Books, 2011.
Fanon, Frantz. Máscaras brancas de pele negra. Nova Iorque, NY: Grove Press, 1967.
hooks, bell. A vontade de mudar. Nova Iorque: Washington Square Press, 2005.
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