Nos últimos 20 anos, as crianças perderam, em média, oito horas de brincadeira livre por semana. Carlos Neto, 69 anos, professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa e investigador, deixa o alerta no seu novo livro, Libertem as Crianças (Contraponto). «Num estudo internacional da Unilever, demonstrou-se que os presos têm mais tempo livre fora das celas do que têm as crianças no seu dia a dia», referiu numa entrevista dada à VISÃO, em novembro.
Antes da crise provocada pela Covid-19 já se vinha a verificar uma redução dos tempos e espaços de brincadeira mas, em julho, em plena pandemia, a UNICEF lançou um alerta: «A situação que vivemos veio introduzir mudanças nas formas de brincar, aumentando o recurso a jogos online (com os riscos que isso implica) e limitando o acesso a espaços de brincadeira ao ar livre.» Para Carlos Neto, só há uma solução: «decretar o estado de emergência do brincar ao ar livre».
Uma doença chamada «sofá»
Longe vai o tempo em que os pátios comuns dos prédios, os jardins perto de casa e a própria rua eram palco de brincadeiras livres, barulhentas e sem adultos à vista. Hoje, a esmagadora maioria das crianças que vivem nos centros urbanos brinca apenas dentro de casa ou em locais vigiados, participando em atividades organizadas. As atividades extracurriculares (AEC) preenchem-lhes as poucas horas livres que têm durante a semana e, quando estão em casa, o mais provável é que ocupem esse tempo em frente a um ecrã.
«Passam muito tempo no sofá, uma das maiores doenças do século. É uma hecatombe», apontou Carlos Neto, na mesma entrevista, «No regresso [à escola] após o confinamento e as férias, vi excesso de peso e uma regressão muito acentuada das suas competências motoras. Algumas, ao fim de dez minutos de Educação Física estão cansadas.»
De acordo com a Sociedade Portuguesa de Pediatria, as vantagens de brincar ao ar livre verificam-se a vários níveis. Previne a obesidade infantil e a diabetes, por exemplo, condições muitas vezes associadas ao sedentarismo; a nível intelectual, treina a atenção e a capacidade de resolução de problemas; e a um nível emocional e social fortalece a resiliência, treina a relação com o outro e estimula a criatividade.
Em busca do tempo (de brincar) perdido
«Brincar é fundamental para que o cérebro desenvolva todo o seu potencial. Há uma série de evidências científicas que não deixam margem para dúvidas», confirma Ana Rita Fonseca, autora de O Livro do Cérebro e co-fundadora da 1,2,3 Macaquinho do Xinês, uma associação de defesa e promoção do brincar. «A sociedade atual tem como fim o produto. O lazer e o prazer ficam para último…», lamenta.
Em setembro, a investigadora subscreveu a Carta Aberta pelo Direito a Brincar em tempo de Pandemia, também assinada por Carlos Neto, entre muitos outros investigadores e profissionais de áreas como o desenvolvimento infantil e a saúde mental. A carta denunciava o facto de se estar a colocar a ênfase na recuperação do tempo de aprendizagens curriculares perdido durante o período de ensino à distância, negligenciando-se a necessidade de se «criar condições para que as crianças recuperem o tempo de brincar perdido.»
Entretanto, com o ano letivo 2020/2021 a decorrer em condições muito especiais (redução dos intervalos, encerramento em algumas escolas dos espaços exteriores, distanciamento físico, etc.) Carlos Neto alertou: «Não é possível ensinar uma criança quieta. Corpos ativos dão cérebros ativos. As crianças têm de ser pequenos pesquisadores, principalmente nas primeiras idades.»
Mas nem os espaços exteriores das escolas escapam à crítica. «O que se vê hoje é betão e sintéticos. É desolador», afirma, «Tiraram tudo o que era interessante. Os pauzinhos, as pedras, a relva, a areia, não há horta, não há nada. Tornou-se um espaço sem sabor e sem sentido. Não é com brinquedos que têm de brincar, é com materiais que a Natureza oferece.»
«A natureza é muito confortável às crianças»
Levar mais natureza para o espaço escolar é um dos objetivos de Leonor Pêgo, escultora de formação, que colabora com Carlos Neto num projeto de «naturalização de recreios» no concelho de Cascais. «Há escolas cimentadas que querem urgentemente ter terra nos seus espaços, levar elementos naturais para os recreios e não sabem como fazê-lo», explica, «o meu trabalho é criar estruturas físicas adequadas, que podem ir de simples troncos de árvore a cabanas ou cozinhas de lama, por exemplo. Enfim, tudo o que evite a plastificação do recreio.»
A oficina Arte e Natureza é outro dos projetos desenvolvidos por Leonor Pêgo, que tem como objetivo dar liberdade às crianças num ambiente natural. Todas as semanas, faça chuva ou faça sol – às vezes até de noite – grupos de miúdos calçam galochas, sujam as mãos de lama e brincam livremente na natureza. Não há atividades obrigatórias, mas todos gostam de participar, e não há «coisas para meninos ou meninas, nem para esta ou aquela idade.»
Ali, constroem-se cabanas com canas, barcos com paus, comem-se frutos colhidos das árvores, trabalha-se com canivetes e acendem-se fogueiras. «Observo que a natureza é muito confortável às crianças. A curiosidade atinge níveis surpreendentes, porque o espaço natural está sempre a mudar e a trazer-nos novidades e surpresas.»
Mas nem todos se sentem imediatamente confortáveis neste ambiente. «Alguns deparam-se com toda esta lama e ficam aflitos com a terra nas mãos e na roupa», conta, «mas superam rapidamente esta estranheza quando percebem que aqui têm toda a liberdade para se sujarem.» O problema, aponta, é não estarem habituados ao que é natural: «Os parques urbanos e infantis, assim como os recreios das escolas, estão muito arranjados, cheios de regras, relva aparada e superfícies esponjosas.»
Com o passar do tempo, contudo, as crianças vão-se libertando e habituando ao escuro da noite ou a mexer no lume da fogueira. «Vão ganhando confiança e força. Cada um cresce ao seu ritmo mas, no geral, noto que todos ficam mais confiantes, desenrascados e também atentos ao que os rodeia.»
[A reportagem sobre a oficina Arte e Natureza pode ser lida na edição de janeiro da VISÃO Júnior, já nas bancas.]
Por que tirámos as crianças da rua?
A rua, em tempos lugar de socialização, lazer e descoberta é hoje, nas grandes cidades de todo o mundo, um espaço dominado por veículos motorizados. Há, contudo, quem lute por devolver a rua aos cidadãos, devolvendo por sua vez à cidade uma animação que tem vindo a perder-se.
Em agosto, numa série de conversas online promovidas pela Ajuda em Ação, Frederico Lopes, brinconauta na Associação 123 Macaquinho do Xinês e membro da Brincapé, foi categórico: «Precisamos de cidades mais amigas das crianças», cidades que incluem as crianças e adotam políticas para que estas possam brincar mais, e de forma segura, nas ruas. «Portugal ainda está longe de ter cidades amigas das crianças, mas está próximo de começar a ter vizinhanças amigas das crianças», afirmou.
O brinconauta deu como exemplo a iniciativa Playstreet 2020, organizada em parceria com a Junta da Penha de França e a Câmara Municipal de Lisboa. Durante um dia, uma rua daquela freguesia foi fechada ao trânsito com o exclusivo objetivo de brincar. Estas iniciativas, cada vez mais comuns noutros países, são, contudo, raras em Portugal.
A importância de correr riscos
Os motivos porque não vemos crianças a brincar livremente na rua ou no exterior são vários, e um deles é o medo… dos pais. Para Carlos Neto, porém, não há razão para tanto receio, uma vez que «somos dos países mais seguros do mundo», mas acredita que «os casos do Rui Pedro e da Maddie danificaram a cabeça dos portugueses.»
Considera ainda que o receio de que os filhos se magoem a subir às árvores ou a descer no escorrega é outro dos entraves à diversão e ao desenvolvimento de adultos resilientes e confiantes. «A confrontação com o risco permite-nos construir uma espécie de fortaleza interior, uma autoestima e uma autoconfiança que são fundamentais no nosso crescimento.» E acredita que fazem falta mais joelhos esfolados e narizes esmurrados porque «o que temos hoje são crianças muito vulneráveis, muito frágeis, diria até com uma grande imaturidade e totós, porque não lhes é dada a liberdade de vivenciar a rua.»
Ana Rita Fonseca concorda: «Brincar na natureza implica risco e esse risco leva as crianças a ter de tomar decisões por si, sem ninguém a dizer-lhe o que deve fazer. Essa tomada de decisão aprende-se a brincar de forma livre e não estruturada pelos adultos.» E deixa um conselho aos pais: «Tenham coragem para resistir à vontade de querer ensinar sempre alguma coisa à criança.»
6 dicas para se divertirem em família
1. Reserve algum tempo por dia para que o seu filho possa brincar lá fora em liberdade. Pode ser no pátio do prédio, no parque infantil próximo de casa ou da escola ou num jardim.
2. Se durante a semana é difícil, aproveite os fins de semana para atividades ao ar livre em família. Passeios de bicicleta, jogos de futebol no parque, um simples passeio no jardim ou uma caminhada na floresta. Deixe que sejam eles a guiarem o passeio. Tudo vale e qualquer uma destas atividades é melhor do que ficar fechado em casa em frente a um ecrã.
3. Andem a pé ou de transportes públicos. Para além da atividade física envolvida, isto proporciona-lhes uma maior ligação com o território e um sentimento de pertença à comunidade e fortalece vínculos afetivos.
4. Crie um kit para levar nos passeio na natureza: lupas para observar pequenos animais ou plantas; frascos ou caixas para guardar «tesouros» naturais; bola, raquetes ou cordas de saltar; cesto de piquenique.
5. Ofereça às crianças livros sobre a natureza e o funcionamento do mundo natural. Vão espicaçar-lhe a curiosidade e responder-lhe a dúvidas.
6. Não se assuste com o frio ou a chuva: não há clima mau para brincadeiras. Está a chover? Levem impermeáveis e galochas e divirtam-se a saltar poças de água.
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