04 Abril 2022
Padre, teólogo e sociólogo, Mons. Tomáš Halík é uma figura eminente da Igreja Checa. Ele viveu pessoalmente a experiência da Igreja clandestina sob o regime comunista, conseguindo montar um olhar penetrante não apenas sobre aquele evento, mas sobre o presente e o futuro do cristianismo na Europa.
As afirmações sobre o juízo superficial dados pelos ocidentais sobre Putin, feitas justamente um mês antes da guerra desencadeada na Ucrânia, são surpreendentes.
A entrevista é de François Euvé, publicada por Il Regno, de março de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
O que a experiência de quem viveu sob o regime comunista pode oferecer para nós, ocidentais do século XXI?
Meus alunos, nascidos por volta do ano 2000, já são cidadãos da Europa Ocidental. Para eles, o comunismo é como era a monarquia dos Habsburgos para a minha geração: um passado distante. Passei minha infância sob o stalinismo, minha juventude na década de 1960, quando meus professores da Faculdade de Filosofia passavam do marxismo-leninismo ao "euromarxismo", ao existencialismo, à fenomenologia e à psicanálise. Essa evolução atingiu seu auge durante a Primavera de Praga e acabou sob os tanques soviéticos em agosto de 1968.
Depois vieram os seguintes 20 anos de comunismo, durante os quais ninguém mais acreditava na ideologia comunista, nem mesmo os altos funcionários do partido: eles eram apenas apparatik cínicos do poder. Depois de 1968, havia muito mais marxistas no Ocidente do que no Leste. Então veio o "annus mirabilis 1989". Não fomos nós, dissidentes, a vencer o comunismo, nem fomos libertados pelo Ocidente. Estou convencido de que o principal papel no colapso do sistema comunista foi desempenhado pelo processo da globalização.
A democracia é vulnerável
Após a criação de um livre mercado mundial de bens e ideias, os sistemas comunistas, com suas economias planejadas pelo Estado e a censura da cultura, foram rapidamente varridos pelos violentos ventos da concorrência.
Sob a presidência de Vacláv Havel, vivemos uma lua de mel com liberdade. Éramos cidadãos europeus orgulhosos e felizes. Depois veio a era do capitalismo selvagem. Os últimos comunistas, os únicos com capital financeiro, contatos e informações depois de 1989, tornaram-se os primeiros capitalistas. O ideólogo do "marxismo invertido", Václav Klaus, o oponente de Havel, o sucedeu como presidente. Ele adorava "a mão invisível do mercado" e abriu a porta para a mão invisível da corrupção graças ao seu desprezo pelo aspecto ético da política e da economia.
Hoje, o nosso presidente, o populista cínico Miloš Zeman, é um fantoche de Vladimir Putin. O que aqueles que viveram tudo isso podem dizer ao Ocidente? Talvez que a democracia não é apenas um sistema político, mas uma determinada cultura de relações humanas que é muito vulnerável e deve ser constantemente mantida. Vocês sabem disso melhor do que eu.
O medo de perder a identidade
Quais são as ameaças mais graves para as nossas sociedades? Quais são as expectativas espirituais hoje?
A única coisa a temer é o medo. Søren Kierkegaard também sabia que a ansiedade é a vertigem da liberdade diante de suas infinitas possibilidades.
A ansiedade típica da era da globalização é o medo da perda de identidade, tanto nos indivíduos quanto nos grupos. Esse medo dá origem a um novo tipo de nacionalismo agressivo, um nacionalismo que muitas vezes recorre à retórica, às emoções e aos símbolos religiosos.
Por muito tempo o Ocidente acreditou que o perigo de uma união entre religião e poder político fosse impedido pelo princípio da separação entre as igrejas e o Estado. Mas a situação mudou, porque agora os estados nacionais perderam o monopólio da política; e as Igrejas, o da religião. Agora as forças supranacionais se envolvem na vida política na forma de poderosas sociedades econômicas, de iniciativas cívicas internacionais e de organizações não governamentais.
Os símbolos religiosos que se emanciparam de seu contexto cultural original tornaram-se um recurso acessível ao público. A ‘mão invisível do mercado’ está pronta para responder ao interesse pela espiritualidade, oferecendo produtos a baixo custo, esoterismo e kitsch religioso de todo tipo. Quando os populistas pragmáticos usam uma retórica religiosa, por exemplo, posando como ‘defensores de uma civilização cristã em perigo’, trata-se mais de uma sacralização da política do que de uma politização da religião.
O grupo de Visegrad e a retórica cristã
Quando símbolos religiosos, que contêm energia emocional insuspeita, são usados como armas em guerras culturais e as controvérsias políticas são retratadas como batalhas apocalípticas entre o bem e o mal, as consequências podem ser realmente desastrosas.
Os populistas dos países do grupo de Visegrad (Polônia, Hungria, Eslováquia e República Tcheca) costumam usar a retórica cristã e, quando estão no poder, tentam corromper a Igreja oferecendo-lhe várias vantagens materiais e privilégios. Hoje, os apelos ao "retorno da Europa cristã" e à substituição da democracia liberal por uma "democracia iliberal", isto é, um Estado autoritário, ressoam sobretudo na Hungria e na Polônia (...)
A convergência entre políticos populistas e em alguns círculos da Igreja é apoiada não apenas por nacionalistas da Europa Ocidental, como Marine Le Pen, mas, sobretudo, de uma forma muito sofisticada, pela Rússia. O esforço sistemático da propaganda russa destinada a minar a confiança em relação à União Europeia no mundo pós-comunista visa especificamente os círculos católicos conservadores. Hoje, a ingenuidade do Ocidente em relação à Rússia de Putin é igual àquela dos anos 1930 em relação à Alemanha.
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