História
O
que mais une as pessoas? O amor? Talvez não. Gostaria que fosse, mas
muitas pessoas têm dificuldade em ultrapassar as diferenças que existem
entre si. Logo, poderíamos pensar que será o dinheiro que une as pessoas
porque há sempre quem paga e quem exige receber, mas sabemos que isso
traz apenas divisão. Curiosamente, na série Game of Thrones (não recomendada a todos pela violência), no final, a resposta pareceu-me muito interpelante: é a história que nos une.
Ninguém
resiste a uma boa história. Quantas vezes não lemos uma história de
vida que redimensiona os problemas que vivemos e nos inspira a
ultrapassá-los? As histórias unem-nos por fazerem parte da inescapável
experiência do tempo. Mas quantas divisões não existem cujas razões se
encontram no passado? Não quer isso dizer que a história dividiu?
Impossível.
As razões que nos dividiram no passado não são
história, mas fazem parte da história. Por isso, a história possui uma
mística própria de nos unir apesar da dor e do amor com que vivemos cada
momento. A divisão do ponto de vista histórico é o esquecimento. Quando
nos esquecemos do passado, criamos uma ruptura no presente que nos pode
induzir a cometer os mesmos erros, e daí a importância de aprender com o
passado.
Em 2007, quando o filósofo canadiano Charles Taylor
ganhou o Prémio Templeton, disse no seu discurso algo sobre o
esquecimento que não esqueci — «os seres humanos, quer admitam ou
não, vivem num espaço de questões, questões muito profundas. Qual é o
sentido da vida, qual é o modo mais elevado de viver, ou o modo mais
baixo, o que vale realmente a pena, qual a base da dignidade que tento
definir para mim próprio, a fome de estar realmente do lado do bem e do
que é justo. Em termos populares, ser parte da solução e não parte do
problema.» — Mas o problema que ele identifica é o seguinte: o perigo que esquecer as questões. E
a razão é simples. Muitas das coisas que acontecem no mundo,
aconteceram porque as pessoas procuraram responder às questões de um
certo modo. E se não construirmos o fio de ouro que une todas as
narrativas das pessoas em busca de um sentido para a sua vida, respostas
às tais questões profundas, quebra-se a história. Algo que me faz
pensar se não seria o momento de estarmos atentos ao que chamaria de memória relacional.
Antigamente,
as famílias reuniam-se à volta da lareira, ou da mesa, para contarem as
suas histórias. Hoje, quando um grupo de amigos se reune ao fim de
algum tempo, nada lhes traz mais alegria e lágrimas do que as suas
histórias. É humano partilhar as nossas histórias. Esta partilha
recíproca das nossas histórias é a memória relacional. Uma memória que
corre o risco de se perder quando deixarmos esta terra se não forem
escritas. Mas antes da escrita, a cultura humana era oral. E como diz
Walter Ong em “Oralidade e Literacia” (não traduzido para português) — «numa cultura oral, o conhecimento, uma vez adquirido, tinha de ser constantemente repetido ou perder-se-ia» Por
isso, é natural contarmos as mesmas histórias quando nos encontramos
para manter viva a memória relacional. Mas Ong argumenta que a oralidade
precisa de produzir, e estaria mesmo destinada a produzir, a escrita.
Porém, Platão tinha medo disso.
O receio de Platão com a escrita
expressa-o na sétima carta a Fedro, caracterizando a escrita como um
meio inumano de processar o conhecimento, indiferente às questões e
destrutivo da memória. Porém, não deixa de ser curioso que se ele não
tivesse escrito isso, ninguém saberia o que pensava e o percurso que o
seu pensamento fez e faz ainda na história.
A guerra na Ucrânia
tem-me feito pensar neste esquecer das questões profundas de Charles
Taylor, e na perda de memória relacional da cultura oral referida por
Ong. Todos nós, ao longos dos últimos anos, vimos as ligações
presenciais substituídas pelas ligações virtuais, ou a busca fácil
google-ando, em vez de continuarmos a desenvolver a memória relacional
falada e escrita.
Durante a Páscoa são inúmeras as mensagens
trocadas entre as pessoas a dizer o mesmo, enquanto um telefonema
poderia favorecer uma pequena conversa onde se recordam algumas
histórias. É urgente continuar a desenvolver a nossa memória relacional
através das experiências presenciais que fazemos juntos. Agora que a
cultura de higienização diminui os riscos de contágio, abre-se a
oportunidade de retomar os nossos encontros presenciais para
construirmos novas memórias e alimentar a história que une a todos.
* Professor na Universidade de Coimbra e Doutorado em Engenharia Mecânica pelo Instituto Superior Técnico. Membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado em self-publishing intitula-se KeepUp - Organização do Tempo de Estudo à venda na Amazon. Em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica. Blogues: Saber Aprender e Ciência e Fé.
Fonte: https://www.imissio.net/artigos/49/4652/historia/?utm_source=email&utm_campaign=daily
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