Por J.C. Guimarães
Inédita em nosso país, parte da obra de Robert Aickman foi lançada recentemente no Brasil com o título “Repique Macabro e Outras Histórias Estranhas”. São contos, principal gênero cultivado pelo autor inglês descoberto pela editora Ex Machina, de Bruno Costa, em parceria com o sebo Clepsidra. Antes dele haviam lançado a melhor edição nacional de H. P. Lovecrat e depois outro mestre do “horror cósmico”, Algernon Blackwood. “Repique Macabro” cobre uma lacuna no Brasil, sendo curioso que o nome de Robert Fordyce Aickman não consta sequer na tradição literária do Ocidente. Entre nós o nome do escritor não aparece nem mesmo na “História da Literatura Ocidental”, provavelmente o mais vasto compêndio da literatura hemisférica em qualquer idioma. Nesta obra de Otto Maria Carpeaux são listados vários contemporâneos britânicos de Aickman, entre os quais o excêntrico Aldous Huxley. Seja como for, é fato que existe uma tradição ocidental, cuja definição, melindrosa, exigiria um estudo mais acurado do que este artigo permite satisfazer. Mas é mais ou menos seguro que tal definição polemiza com uma ampla área da literatura: o “gênero” policial, a ficção científica, o romance católico e, justamente, a ficção de teor sobrenatural, à qual Aickman pertence. Uma hipótese razoável é que tais vertentes seriam (lembrando Carpeaux) menos fenômenos estéticos do que fenômenos sociológicos. O que elas afinal teriam em comum, para constituírem um grupo identificável e à parte, digamos assim?
Possíveis defeitos por si sós constituiriam um péssimo argumento, pois toda a literatura possui muitos defeitos, incluindo a que se inscreve como tradição. Com base na “História da Literatura Ocidental” a questão é que mesmo os nomes mais representativos do amplo espectro considerado revelariam: 1) fragilidade moral e psicológica dos personagens (tipos); 2) indiferença com a forma — altamente valorizada sobretudo pelo modernismo —; e 3) um esquematismo pasteurizante, tudo decorrente, enfim, de 4) um apelo fácil, de caráter mercadológico. Seriam traços característicos de grandes nomes deste meio e não daquele outro, e para os quais a crítica afinada com a tradição realmente torce o nariz. Podemos citar Edgar Allan Poe e Agatha Christie como exemplos problemáticos. Se é verdade que Poe, em particular, fora reconhecido por sumidades indiscutíveis como Baudelaire, também é verdade que nem por isso Harold Bloom e Carpeaux deixam de considerá-lo um autor de segunda categoria. Este juízo, é claro, não se aplica a todos os nomes daqueles quatro gêneros ficcionais.
Carpeaux lembra que Georges Simenon fora elogiado por André Gide tanto quanto o desconhecido Wilkie Collins — o primeiro a escrever sobre terror — o fora por ninguém menos que T. S. Eliot. O próprio polígrafo brasileiro tende a reconhecer o autêntico valor artístico de outros nomes deste meio, como Sheridan Le Fanu e H. P. Lovecrat. Com efeito, existem graus neste meio como em qualquer outro, permitindo que alguns nomes se sobressaiam aos olhos de cultores da tradição. Certamente há um limite, senão J. R. R. Tolkien logo poderia ser saudado como grande escritor! Estaríamos sendo preconceituosos com ele? Seria coerente colocar Tolkien na estante ao lado de James Joyce, por exemplo, como é possível colocar Marcel Proust ou Virginia Woolf? Por que Tolkien e não Noah Gordon, então? Há muita suscetibilidade em jogo. O autor da fantasia “O Senhor do Anéis” é um caso extremo, embora o ecoe talvez um Nobel recente: o Kazuo Ishiguro de “O Gigante Enterrado”. O meio termo entre isto e aquilo seriam aqueles escritores — a título de contraste com a tradição — excêntricos: Somerset Maugham, Graham Greene, H. G. Wells, George Orwell, Conan Doyle, Dashiell Hammett, Mary Shelley, Bram Stoker e similares. Robert Aickman seria um excêntrico?
Mas excêntrico por quê? Porque como Bram Stoker escreve sobre assuntos, digamos, sobrenaturais? Eis um argumento contraproducente! Pois a literatura sobrenatural é um fortíssimo ramo da tradição, que deriva do gótico, do romantismo, do simbolismo: escolas propriamente formadas ou das quais derivam todos os “excêntricos” do terror e do horror (parece existir uma diferença entre os dois conceitos) que até aqui nos serviram de exemplo. Assim é que E.T.A. Hoffmann — um gigante da tradição — bebeu nas mesmíssimas águas de Poe — supostamente o medíocre excêntrico de Harold Bloom. É fato, portanto, que as águas da tradição se misturam com o que estamos chamando de excêntricos por razões meramente didáticas. Embora Robert Aickman seja um esquecido no século 20, Jorge Luis Borges e Franz Kafka — nomes não apenas indiscutíveis da tradição, mas além disso canônicos — pertencem à mesmíssima matriz espiritual que ele. Borges e Kafka, é óbvio, não possuem aquelas possíveis limitações teoricamente mais comuns entre o que estamos chamando aqui de excêntricos — e acaso essas limitações seriam detectáveis em Robert Aickman? Ou ele apenas é um dos melhores na vertente do horror, como Wilkie Collins o fora no mesmo gênero, e Simenon o fora no policial, como já foi mencionado? Parece ser este o caso. Seguramente não é um autor esquemático, e algum comentarista autorizado poderia provar a consistência de seus personagens: Aickman seria capaz de criá-los “redondos”, nos termos de E. M. Forster. E se é verdade que o horror atrai leitores com muito mais facilidade que a sintaxe woolfiana, é bastante improvável que Aickman se torne algum dia popular (ao que consta, nem ele queria isso). Porque não é um autor fácil ou sequer compreensível, apesar da linguagem tradicional. Sirva-nos de exemplo um conto chamado “Ravissante”, de “Repique Macabro”.
Refere-se a um pintor simbolista que marca encontro com uma certa Madame A., ocasião em que coisas estranhas, então, acontecem. São duas partes e cinco personagens. Na primeira temos o narrador, o pintor e também sua esposa, e há três circunstâncias: a festa onde o narrador conhece o casal; os jantares e a notícia por cartas de que o narrador se torna testamenteiro do pintor (já falecido), e o encontro com a viúva deste para discutirem o assunto. A viúva lhe oferece os papéis do pintor, que passa a ser a voz narrativa da segunda parte, onde entram em cena Madame A. e sua filha adotiva Chrysotème, esta sem existência física. Também nesta parte há três circunstâncias: uma reflexão do pintor sobre as mulheres, outra sobre a pintura, revelando-nos na terceira, e por último, como foi seu encontro com Madame A., em Bruxelas. O “fato” central da trama parece ser este encontro do artista com a velha decrépita com aspecto de gnomo. Desenvolve-se entre os dois uma espécie de performance, com fortes conotações eróticas (uma marca de Aickman). Em seguida o pintor escapa para a rua, e isso é tudo o que… “acontece”.
Mas importa o que acontece ou o que acontece é menos relevante que as alucinações, para Aickman? Afinal, ele conclui assim o conto: “Dentro de vinte e quatro horas, percebi com bastante clareza que não podia ter havido nenhum cão, nenhum animal agachado sobre a luminária, quadro nenhum sobre a cama e, provavelmente, nenhuma filha adotiva. O problema era, e continua sendo, que essa verdade óbvia só piora as coisas. De fato, é precisamente onde o verdadeiro problema começa. O que será se mim? O que acontecerá comigo? Que fazer? Quem sou?” Parece, assim, um transtornado mental. Uma das coisas que Aickman pode nos levar a perguntar é: o que é realmente estranho à vida? Quantas coisas consideradas estranhas não acontecem o tempo todo? Sugere que o estranho é tão comum que é a única coisa que de fato acontece. Talvez, por isso, mais que comum o bizarro se confunde com o normal — e o normal fica trespassado dessa ambiguidade insólita. No caso de “Ravissante”, Madame A. significa algo além de uma velhota esquisita? A relação entre ela e o pintor, tão mais jovem, teria conotações psicanalíticas (já que seria um caso psicológico)? Que significado oculto há por trás dos vestidos e lingeries, da filha Chrysotème, que a velha quase obriga o pintor a cheirar, durante o encontro? E o cão espectral que ele vê — por que um cão? Para a frustração do leitor, não vamos aqui além de ricochetear sobre essas questões.
A mágica está na “maneira” peculiar com que Robert Aickman expõe este caráter ambíguo da realidade, ao que “parece” revestindo-a de profundas implicações simbólicas.
Harold Bloom considerou algumas características do gênio em seu livro homônimo. Duas delas poderiam perfeitamente ser aplicadas a Robert Aickman: a Originalidade e o Estranhamento. No primeiro caso porque Aickman, apesar das fontes seguras, não é um “imitador” ou “diluidor” (recorro neste ponto às famosas categorias de Ezra Pound). Tanto é assim que Aickman prefere chamar o que escreveu de “strange tales”. E são mesmo contos estranhos. Ele é tão bizarro no que faz quanto Kafka ou Borges, mas ao mesmo tempo muito diferente de ambos e de qualquer outro autor do espectro sobrenatural. É personalíssimo às raias da solidão. Quanto ao Estranhamento, não há quem tenha lido literatura fantástica ou congênere e, ao se deparar com Aickman, consiga achar que o ambiente em que o autor inglês nos insere é familiar, por causa disso. Não: ele não se torna familiar apenas porque seus pares foram lidos, eventualmente; é novo à sua maneira de lidar com as influências românticas ou simbolistas que enformam toda a vertente do sobrenatural. Aickman sem dúvida é uma novidade, alguém que encontrou um jeito de dizer as coisas de forma singular, sua e de mais ninguém. E não seria esta a melhor definição de um escritor ao pé da letra?
Não obstante não seja um estilista — não se reconhece nele uma peculiaridade frásica ou verbal como é tão próprio de Borges ou, digamos, J. M. Coetzee —, a prosa de Robert Aickman tem algo de incomum, capaz de resistir ao exegeta mais paciente e perspicaz.
Fonte: https://www.revistabula.com/50572-robert-aickman-e-o-escritor-mais-estranho-que-voce-podera-ler-algum-dia/ 26/04/2022
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