No mesmo dia em que se anunciava a permanência da Finlândia no primeiro lugar do ranking dos países mais felizes do mundo, repercutia entre nós, mas sem real interesse popular, um relato ignominioso sobre garimpeiros que violentam adolescentes yanomamis e poluem os rios.
No ranking, o Brasil, que já ocupava um dos piores lugares, caiu ainda mais. Uma autoexplicação finlandesa: os índices benfazejos se devem ao sentimento de honestidade e comunhão inerente àquele povo.
Variações sociais à parte, o caso brasileiro de algum modo remete ao
velho e inquietante tópico sobre a existência, ou pelo menos a
consistência política, de um povo nacional. É de Lima Barreto
(1881-1922) a frase "o Brasil não tem povo, tem plateia". Antes dele, o
médico francês Louis Couty (1854-1884) tinha observado que "o Brasil não
tem povo".
Criador do Laboratório de Fisiologia do Museu Nacional do Rio de
Janeiro, Couty é também autor de um estudo sobre a numerosa elite
escravista brasileira, além da qual existiria apenas uma população
amorfa. De fato, população não é povo, no sentido de corpo político vivo
e liberalmente organizado, dando margem ao que se entende como massas,
ou seja, uma figuração pré-política, alheia à verdade da representação:
estratos humanos excluídos do processo de poder e da tomada de decisões
institucionais.
Do ponto de vista social, a modernidade brasileira gira em torno da
constituição falha de um povo nacional. Fantasiou-se sempre uma ideia de
unidade, que é na prática a negação elitista de outras possibilidades
concretas de organização além da oficial. O que de fato caracteriza o
país é uma pluralidade marcante de modos coletivos de subjetivação. São
"povos", que coexistem sob um Estado canibalizador, em geral ocupado por
governos indiferentes ou cruéis. É bem o caso do atual, tolerado por
uma burguesia de rédeas soltas, leniente com banditismos de toda ordem
(garimpeiros, exploradores religiosos, milicianos).
Povo mesmo é criação do liberal "État-gendarme", o contrário do sombrio
"Estado-bandido" do presente. O povo mitificado como ideia republicana
una sublimou-se na mídia e agora é resto de história, senão nicho de
mercado.
Real é a diversidade dos povos nacionais (indígenas, negros, camponeses,
ribeirinhos, caboclos), que vêm elevando a sua voz identitária, embora à
margem das instâncias decisórias. A falência da representação política
abre portas à índole bovina das massas customizadas como "classe-mídia",
às fraudes messiânicas e à corrupção sistêmica.
Não é um ecossistema favorável a autoavaliações felizes. A menos que se troque a ideia de povo pela de gado pastoreado.
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