A gratuidade nasce assim da certeza calada de que o outro está lá, a velar por nós.
“Se os amigos são tão importantes na nossa vida, como é que temos tão pouca vida para os amigos?
Tudo serve de desculpa. O trabalho, a família, o sono, o sofá.
Habituamo-nos a adiar encontros cada vez com menos caracteres… Mas entre
um “não posso” e outro, os grandes amigos vão-se tornando estranhos. O
que é estranho!” [1]
Na maioria de nós há uma necessidade inata de identificação, de fazer parte, ao mesmo tempo de dar e receber afeto, estes são alguns dos motivos que nos levam, enquanto petizes, a repetir várias vezes o nome daquele amigo quando nos perguntam como correu o nosso dia. Mais tarde serão os telefonemas, incompreendidos pelos pais, uma vez que passaram o dia juntos na escola, mas ainda assim há matéria para mensagens e chamadas infinitas. Os programas fora do tempo de aulas, as tardes na escola, idas ao cinema, ainda com o pai a levar e buscar de carro. Precisámos de amigos, “como de espelhos para vermos o nosso rosto” [2].
A vida, podendo em alguns casos assumir um trajeto mais previsível nos primeiros anos, encarrega-se de nos colocar à frente aqueles de entre os quais nos vamos aproximando, só de alguns…a amizade é assim particular, de um para um.
Ao longo dos anos, cada vez mais incertos, entre a faculdade, os trabalhos e os diferentes destinos, novos amigos surgem, outros permanecem e outros ainda, ficam para trás, na memória dos momentos e espaços que habitamos juntos.
O que distingue os que ficam dos que partem?
Poderíamos pensar que seria o afeto, mas ainda assim podemos olhar para trás e reconhecer pessoas incríveis com quem nos cruzamos e por quem mantemos uma admiração e carinho enormes. Excluímos assim o afeto e vejamos, de outra perspectiva, o que requer então a amizade para permanecer viva? Quando digo viva, assumo à partida que esta pode assumir diferentes formas, desde os amigos com quem mantemos um contacto permanente até àqueles com quem nos cruzamos, de longe a longe, quando a vida permite e com quem mantemos a certeza de poder reclinar a cabeça.
A amizade para viver exige mais que afeto? Talvez…
Talvez exija sintonia e reciprocidade, não falaremos para quem não nos escute, dificilmente continuaremos a abraçar se não formos abraçados de volta. Precisámos de sinais de que o outro está lá, a amar-nos de volta. Nesta partilha nasce o coração da amizade, o que a torna única e especial, a intimidade.
Fidelidade, a amizade que vive não se faz de momentos pontuais intensos e prazerosos. Faz-se da constância e da continuidade, do desejo comum de que haja uma próxima vez, da necessidade partilhada do encontro.
E finalmente a gratuidade, aquele ingrediente que tempera a necessidade, que não mede o que se dá, nem cobra o que se há-de receber. A gratuidade nasce assim da certeza calada de que o outro está lá, a velar por nós.
Se inicialmente os outros nos revelam de nós mesmos, com o passar do tempo, talvez a qualidade das relações que mantemos seja como um reflexo na água. Quando te reclinas, o que vês?
“As grandes amizades não pedem muito. Mas pedem manutenção. Pedem
olhares, silêncios, sintonia. Piadas que mais ninguém percebe. Pedem
tempo! Mesmo que pareça pouco. Vai sempre parecer.
Não precisamos de mil amigos, precisamos de bons amigos. Muito mais do que imaginamos.” [1]
[1] Publicidade Super Bock
[2] Carlos G. Vallés S.J. , Vivendo Juntos
Artigo originariamente publicado no essejota.net site desativado da Pastoral juvenil dos jesuítas em Portugal.
Fotografia de Kevin Gent – Unsplash
* Antiga Aluna do Colégio das Caldinhas, antiga animadora de Campinácios, Centros Universitários e outros projetos ligados à pastoral da Companhia de Jesus. Formada em Psicologia, trabalha desde 2014 na área da Promoção e Proteção dos Direitos das Crianças e Jovens. Casada e mãe do Francisco, curiosa sobre o tema da Parentalidade.
Fonte: https://pontosj.pt/opiniao/sobre-a-amizade/
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