Por LUIS FELIPE MIGUEL*
Introdução do autor ao livro recém-lançado.
Uma história da democracia no Brasil – que não é o objetivo deste livro – começaria provavelmente após a Segunda Guerra Mundial. Foi apenas então, sob o influxo da vitória dos Aliados, que se afirmou de fato a intenção de edificar no país um regime que pudesse passar por democrático. O experimento político que vigorou a partir de 1945 foi marcado por tensões e sobressaltos, incluindo sucessivas tentativas de golpe e contragolpes militares, e chegou a seu fim depois de menos de 20 anos. Seu limite fora alcançado quando forças populares julgaram que tinham condições de impor um pacote de “reformas de base” com o intuito de reduzir a desigualdade social vigente no país.
Seguiu-se uma longa ditadura e uma transição cuidadosamente pactuada, que permitiu o retorno à democracia na segunda metade dos anos 1980: devolução do poder aos civis em 1985, promulgação de nova Constituição em 1988, eleições presidenciais diretas em 1989. Apesar das mudanças profundas no cenário internacional e do realinhamento não menos significativo das forças políticas domésticas, a democracia da Nova República também mostrou fôlego curto.
Foi golpeada em 2016 e, em 2018, viu a presidência ser concedida, em eleições formalmente competitivas, a alguém que não escondia que seu projeto era desfazer o trabalho da transição. O impeachment ilegítimo da presidente Dilma Rousseff é o emblema de um processo de rompimento do pacto constitucional que permitiu a vigência da ordem democrática no Brasil, uma vez mais por iniciativa dos grupos que sentiam ameaçada a ordem desigual que lhes concede vantagens e privilégios. A vitória de Jair Bolsonaro, por sua vez, mostra como eram frágeis os consensos que deveriam garantir a continuidade da Nova República.
Ao que parece, a desigualdade é o limite da democracia no Brasil. Enfrentar uma aumenta o risco de perder a outra. Mas a fronteira – até onde é possível avançar na redução da desigualdade sem desestabilizar o regime democrático – não é determinada de antemão. E, ainda mais importante, esta limitação autoimposta compromete a legitimidade do uso do rótulo “democrático”. Uma democracia que está condenada a não desafiar a reprodução das desigualdades sociais é, quando muito, uma democracia pela metade. O dilema se apresenta, então, de forma diversa: não é uma opção entre democracia e instabilidade, mas entre democracia e semidemocracia.
A relação entre a democracia (uma forma de dominação política) e a igualdade (um parâmetro de apreciação do mundo social) talvez não seja um tema tão central hoje, mas tem uma longa trajetória na história da filosofia política. Para Rousseau, a igualdade é condição necessária para qualquer governo livre; a revolução copernicana que ele estabeleceu na teoria do contrato social reside precisamente em seu entendimento de que a função do Estado não é produzir a desigualdade de poder a partir de uma situação inicial em que ela inexistia, como pensavam Hobbes e Locke, mas, ao contrário, impedir que ela se estabeleça. Em trecho célebre d’O contrato social, ele aponta que a sociedade própria para a edificação de suas instituições democráticas é aquela em que “nenhum cidadão seja tão opulento que possa comprar um outro, nem tão pobre que possa ser constrangido a se vender”.[i]
Quase um século depois, Alexis de Tocqueville ainda usava “democracia” e “igualdade” praticamente como sinônimos, mas sua percepção da igualdade já era muito mais formal, menos material do que a de Rousseau.[ii] Na leitura de C. B. Macpherson, esta é a característica que distingue a “democracia liberal” das teorias democráticas anteriores: ela “aceitou e reconheceu desde o início […] a sociedade dividida em classes e buscou nela encaixar uma estrutura democrática”.[iii] A relação entre democracia e igualdade torna-se mais complexa, uma vez que não se pode apresentar, como premissa, um mundo social igualitário.
Renda, escolaridade, classe, gênero, raça: o regime que se quer democrático convive, no entanto, com todos estes eixos de desigualdades. À medida em que se desenvolve uma compreensão mais complexa da igualdade e da desigualdade, sensível à manifestação das assimetrias sociais mesmo quando elas já foram expurgadas da letra das leis, fica patente o contraste entre o discurso fundador da democracia – o poder de um “povo” aceito como homogêneo e indiferenciado – e o mundo social no qual ela se estabelece.
De forma esquemática, é possível apontar quatro interseções básicas entre a democracia e a igualdade.
(1) A democracia pressupõe a igualdade de valor entre todas as pessoas – e, de maneira talvez menos enfática, também uma igualdade potencial de competência e de racionalidade. Toda a justificativa para a opção por uma ordem democrática parte daí: todos devem contar igualmente, a vontade de um pesa tanto quanto a vontade de qualquer outro, assim como o bem-estar de cada pessoa vale tanto quanto o bem-estar de qualquer outra. Por isso, todos devem participar de forma igualitária do processo de tomada de decisões. Não por acaso, de Platão aos dias de hoje, os opositores da democracia em primeiro lugar afirmam a existência de desigualdades naturais e denunciam o risco de que, dando poder de influência a todos, o resultado seja a decadência da qualidade das decisões coletivas.
(2) A democracia produz igualdade (política), ao transformar todos em cidadãos dotados de direitos idênticos. Pode ser descrita, assim, como a forma política de uma sociedade de “desiguais que necessitam ser ‘igualados’ em certos aspectos e para propósitos específicos”[iv]. A igualdade convencional, ao mesmo tempo em que veta determinadas formas de discriminação, permite que o Estado aja “como se” todos fossem realmente iguais. Deste ponto de vista, torna-se, como não cansam de apontar perspectivas críticas, uma ferramenta de ocultamento e, portanto, de naturalização das desigualdades sociais.
(3) O que este ocultamento apaga é o fato de que a democracia é vulnerável às desigualdades sociais existentes. As vantagens materiais e simbólicas dos grupos privilegiados transbordam para a arena política, o que explica sua maior presença entre os governantes e, sobretudo, a maior receptividade dos governantes, quaisquer que sejam suas origens, a seus interesses. Não se trata, afinal, de meras assimetrias no controle de recursos, que poderiam ser contidas com medidas que buscassem impedir que elas extravasassem para o campo da política. São padrões estruturais de dominação, que se manifestam por dentro das instituições democráticas.
(4) Por fim, a democracia é instrumental na luta contra as desigualdades. Os grupos dominados têm incentivos para usar a seu favor a igualdade política formal, forçando a adoção de medidas que se contrapõem à reprodução das desigualdades e das dominações em outras esferas da vida social.
O entendimento das tensões entre estes quatro elementos é crucial para a apreensão dos problemas das democracias contemporâneas – e também das peculiaridades daquelas que se edificaram nos países da periferia capitalista. Estes, por razões históricas, vinculadas à colonização e ao padrão das trocas econômicas internacionais, são países que exibem perfis de desigualdade mais acentuados do que na Europa Ocidental e na América do Norte, de onde em geral são importados nossos modelos teóricos. O descompasso entre a nossa realidade e as teorias que somos levados a empregar para interpretá-la é, como se verá em seguida, uma das questões que atravessam este livro.
A citação de C. B. Macpherson apresentada há pouco traz uma elipse. O original diz, como citado, que a teoria da democracia liberal aceitou e reconheceu desde o início a sociedade dividida em classes, mas aponta: “mais claramente no início do que depois”. De fato, à medida que o ordenamento liberal-democrático se afirmou, tornando-se o padrão no mundo ocidental, a consciência de sua vinculação com a sociedade de classes foi sendo relegada a um distante segundo plano. A democracia é percebida como restrita a uma arena política na qual a igualdade formal impera, logo as desigualdades que persistem para além dela podem ser desconsideradas. Este é o horizonte de entendimento também de grande parte da Ciência Política, que se estabeleceu como disciplina acadêmica ao longo do século XX. Muitos de seus modelos postulam um mundo social dividido em dois tipos de agentes (eleitores e candidatos), indistintos internamente e buscando a satisfação de seus interesses. Classe, assim como gênero ou raça, aparece, quando muito, como um elemento lateral, secundário.
Este livro parte da convicção oposta – de que qualquer modelo interpretativo da política e da democracia que não dê centralidade às desigualdades sociais, em particular ao capitalismo, estará fadado a fracassar. A democracia é um modo de dominação política, mas que não se superpõe a um mundo social desabitado, e sim a um mundo estruturado pela dominação capitalista (e também pela dominação masculina e pelas hierarquias raciais). É uma forma específica de gestão do Estado, mas este não é um ente abstrato e sim um Estado capitalista.
Os cidadãos dotados de direitos políticos não são criaturas incorpóreas e sim pessoas concretas, com sua situação no mundo determinada por fatores como a posição nas relações de produção e o acesso à propriedade, o gênero e a sexualidade, a origem étnica e a cor da pele. Para entender o funcionamento das democracias realmente existentes, é preciso entender qual o significado da acomodação entre suas regras e a vigência de profundas desigualdades – de riqueza, de classe, de gênero, de raça e outras – que impactam a capacidade de ingresso na esfera pública e de produção e defesa dos próprios interesses.
Trata-se de uma agenda de pesquisa há qual me dedico há muitos anos. Este livro nasce da confluência entre ela e a conjuntura política recente do Brasil – marcada pelo golpe de maio e agosto de 2016, que destituiu uma presidente ao arrepio das normas em vigor, num processo de degradação das garantias legais previstas na Constituição de 1988, e abriu caminho, primeiro, para um governo que impôs acelerado retrocesso nos direitos cidadãos e, em seguida, para o triunfo eleitoral de um candidato obscurantista e confessadamente autoritário.
A caracterização do impeachment da presidente Dilma Rousseff como golpe foi tema do debate político, ainda que hoje pareça cada vez mais difícil recusá-la. O argumento contrário apontava o cumprimento dos ritos previstos na Constituição e o beneplácito do Supremo Tribunal Federal, que seriam suficientes para garantir a legalidade do processo. Para além deste aspecto formal, porém, há a definição do crime de responsabilidade, condição necessária para a substituição do chefe de governo no regime presidencialista. Não ficou demonstrado que Dilma Rousseff cometeu algum crime do tipo e, mais importante ainda, uma grande parcela dos congressistas que votaram por sua retirada se mostraram despreocupados com a questão, invocando justificativas que passavam ao largo da letra da lei (a gestão da economia, o “conjunto da obra”, a defesa da família patriarcal etc.).
Se o golpe é definido como uma “virada de mesa” de uma parte do aparelho de Estado, que redefine as regras unilateralmente e em seu favor, então é mais do que razoável definir como golpe o que ocorreu no Brasil em 2016[v]. Ele não se limitou, sempre é bom lembrar, à substituição do ocupante da presidência da República. Foi o momento inicial de um realinhamento de forças políticas, em prejuízo daquelas situadas à esquerda, que se tornaram alvo de perseguição pelo aparelho repressivo, e de uma reestruturação dos compromissos do Estado com os diferentes grupos sociais, imposta sem o processo de negociação e pactuação que seria exigido caso a ordem constitucional permanecesse válida.
O que nasce desta confluência entre a agenda de pesquisa e as palpitações do momento político não é um projeto de reconstituição da história do presente ou uma análise de conjuntura distendida. O objetivo não é compor uma narrativa informada, nem mesmo uma análise crítica do processo político brasileiro recente, mas usá-lo a fim de iluminar as questões centrais sobre a relação entre a democracia política e as desigualdades sociais.
A investigação foi orientada por uma hipótese dupla, que pode ser assim formulada: (1) A estabilidade dos regimes democráticos concorrenciais depende de que os grupos que controlam grandes recursos de poder julguem que o custo para subverter a democracia é maior do que o custo de conviver com ela. Tais custos, porém, não respondem a uma métrica objetiva, sendo resultado de uma avaliação subjetiva destes mesmos grupos. (2) Nos países da periferia capitalista, a tolerância dos grupos dominantes à igualdade é muito baixa, o que faz com que a avaliação subjetiva dos custos da ordem democrática siga padrões diferentes daqueles que vigoram no mundo desenvolvido. A “instabilidade” da democracia seria, assim, função da maior sensibilidade ao potencial igualitário que mesmo um regime democrático apenas concorrencial carrega. No Brasil, as rupturas de 1964 e de 2016, a despeito das múltiplas diferenças que as separam, são ambas ilustrações deste mesmo fenômeno.
O caso brasileiro, assim, ilumina a discussão sobre os limites da democracia numa ordem desigual e, em particular, numa ordem desigual e periférica. O principal deles se liga ao descompasso entre o poder político igualitário, que o voto promete, e o controle desigual dos recursos políticos. Enquanto este controle desigual é capaz de produzir uma manifestação formal do poder político igualitário (isto é, resultados eleitorais) que não afeta os interesses dominantes, o sistema funciona com baixa tensão. Mas quanto maior a disjunção, maior a possibilidade de que a democracia entre em crise. O segundo limite importante diz respeito à vulnerabilidade às pressões externas, uma vez que os países da periferia capitalista sofrem a interferência constante das potências centrais (no caso, concretamente, dos Estados Unidos), que impõe limites a medidas voltadas a permitir um exercício ampliado da soberania nacional.
Uma leitura unilateral da democracia eleitoral faz dela um sistema que permite a transmissão quase automática da vontade popular para as políticas governamentais, uma narrativa que engloba autores tão díspares entre si quanto Anthony Downs e Jürgen Habermas.[vi] Outra leitura unilateral a reduz à “forma padrão da dominação burguesa”, como na visão leninista. Mas a democracia é melhor entendida como arena e efeito dos conflitos sociais. Ela nasce como resultado desses conflitos, por pressão dos grupos dominados, e produz o novo espaço onde eles ocorrem.
Mas não é um espaço neutro: ela reflete as correlações de forças que a produziram. Trata-se de uma visão inspirada na ideia do Estado como “ossatura material” da luta de classes, tal como exposta na obra final de Nicos Poulantzas[vii]. Longe de ser a arena neutra de resolução dos conflitos de interesses, tal como na leitura idealista, ou o instrumento a serviço da classe dominante – igualmente neutro, porque potencialmente utilizável por qualquer um dos grupos –, o Estado é visto como espelhando as relações de força presentes na sociedade.
Essa tensão entre igualdade e desigualdade, que é constitutiva da democracia, se refere às clivagens de classe e de riqueza, mas não só. No caso brasileiro, por exemplo, a derrubada de Dilma Rousseff contou com inegável reforço de um discurso misógino e a sensação de “ameaça”, dados os avanços da presença de mulheres, de negras e negros e da comunidade LGBT, também desempenhou papel relevante na mobilização em favor do golpe.
O agravamento da crise política no Brasil dos últimos anos revelou como essa tensão se manifesta em contexto periférico. As políticas compensatórias dos governos petistas, ainda que formuladas de maneira a não retirar riqueza dos grupos privilegiados, foram julgadas intoleráveis. Há um componente econômico – o capitalismo brasileiro é incapaz ou desinteressado de encontrar meios de garantir sua competitividade que não passem pela superexploração da mão de obra, portanto depende da permanência de uma vulnerabilidade social extrema.
Há um componente simbólico, vinculado à reprodução das hierarquias sociais. A estabilidade democrática é ameaçada mais facilmente, uma vez que a margem de manobra para políticas que beneficiam os setores populares é bem menor. E há, por fim, um componente propriamente político, vinculado à posição da classe burguesa brasileira, que está bem acomodada na condição de parceira menor do capital internacional e, assim, não se interessa em produzir um projeto nacional.
A crise da democracia no Brasil não é, portanto, um acidente de percurso, nem mero reflexo da crise mundial das democracias, que a literatura internacional aponta desde o começo do século XXI e, ainda mais, a partir do triunfo eleitoral de Donald Trump, nos Estados Unidos, em 2016. Está ligada à dificuldade que temos de enfrentar o hiato entre democracia política e desigualdade social.
Como este hiato pode ser enfrentado? As opções, em linhas gerais, são duas. Uma é garantir que as brechas para a expressão dos interesses da classe trabalhadora e dos outros grupos dominados, que a concessão dos direitos políticos e o sufrágio universal geram, sejam neutralizadas, não tenham impacto na ação do Estado. É o caminho da desdemocratização, isto é, da construção de um regime que mantém a fachada da democracia, mas pouco ou nada de sua substância. A outra opção é ampliar a capacidade de organização e pressão dos dominados, a fim de que a eventual expressão de seus interesses nas arenas institucionais seja sustentada na sociedade.
Trata-se, portanto, não de buscar o apaziguamento dos grupos sociais que hoje promovem o desmonte da democracia a fim de melhor proteger seus privilégios, mas de incidir sobre a correlação de forças. Esta é a única possibilidade para a construção de uma democracia no Brasil que seja capaz, a um só tempo, de alcançar algum grau de estabilidade e de permanecer fiel a seu horizonte igualitário.
Os capítulos que se seguem mesclam reflexão teórica e análise sobre a situação política brasileira. Tenho a esperança de que a combinação flua da forma como imaginei, com teoria e caso concreto iluminando um ao outro. O primeiro capítulo discute a evolução da democracia liberal, a partir da Segunda Guerra Mundial, com foco em suas sucessivas crises, em especial a atual. Para boa parte da literatura da Ciência Política, a crise é um efeito da decadência das elites, que se deixaram seduzir pelo chamado “populismo”. É mais produtivo, no entanto, vê-la como uma manifestação do esgotamento das circunstâncias históricas excepcionais que permitiram, por algumas décadas e em determinadas partes do mundo, a redução das tensões geradas pelo casamento conflituoso entre democracia e capitalismo. A raiz da crise é a crescente inconformidade da classe capitalista com qualquer tentativa de regulação de seu comportamento, logo de seus ganhos, por meio dos mecanismos democráticos.
O olhar se desloca da literatura internacional para os países da periferia capitalista no segundo capítulo. Nele, o percurso do capítulo 1 é refeito a partir da experiência, muito diversa, dos países que, em vez da prosperidade econômica, integração social da classe trabalhadora e estabilidade política que teriam caracterizado o mundo desenvolvido, viveram a segunda metade do século XX em meio a pobreza, exclusão, golpes e autoritarismo.
No momento em que eles experimentam suas transições democráticas, o pacto que permitiu o florescimento da democracia nos países do Norte global já está se erodindo. Se a desdemocratização diagnosticada nos primeiros anos do século XXI é entendida como sendo a retração do poder da soberania popular para constranger a ação de grupos poderosos, a começar pelas classes proprietárias, então ela pode ser entendida como uma aproximação do mundo desenvolvido à realidade da periferia. É o que chamo, com um leve toque provocativo, de teleologia às avessas: em vez do Norte revelar o futuro do Sul, como afiançava a literatura sobre as transições, fomos nós que antecipamos o rumo que suas democracias iriam tomar.
No terceiro capítulo, que abre a segunda parte do livro, entra em cena com maior destaque o caso brasileiro. A Constituição de 1988 passou à história com o codinome de “Constituição cidadã”; a ordem institucional que ela definia era considerada, por correntes majoritárias da Ciência Política, como capaz de prover alguma estabilidade ao sistema – ainda que aos trambolhões e, às vezes, por meio de mecanismos impuros, como o chamado “presidencialismo de coalizão”. Faço uma análise de aspectos do processo constituinte, apontando os limites incorporados na nova Carta, não propriamente como defeitos, mas como válvulas de segurança para os grupos dominantes – brechas que permitiriam recolocar o país “nos trilhos”, caso se considerasse que a democracia estava avançando demais na direção da igualdade social.
O ordenamento constitucional, é claro, explica apenas uma parte, menos ou mais relevante, da dinâmica política. Após o golpe de 2016 e o triunfo eleitoral de Jair Bolsonaro, uma parte da Ciência Política brasileira ingressou numa discussão algo bizantina, voltada a saber se a culpa da crise devia ser creditada às instituições ou aos agentes políticos. “Algo bizantina” porque, afinal, um dos papéis principais das instituições seria canalizar o comportamento dos agentes.
E também porque as instituições não são entes abstratos: elas são “povoadas”[viii], isto é, ocupadas por determinados agentes, e só operam por intermédio deles. Nos dois capítulos seguintes, é discutida a relação entre os principais agentes políticos e o ambiente institucional em que se moviam, no sentido tanto de sua adaptação, aceitando os incentivos que lhes eram oferecidos, quanto de busca pela transformação das regras e dos aparelhos a fim de melhor alcançar determinados objetivos.
Assim, o capítulo 4 trata do Partido dos Trabalhadores, que se tornou – de maneira até surpreendente – a peça central do xadrez político-partidário da Nova República. Exceto para os poucos que ainda acreditam no discurso fajuto do “radicalismo” petista, usado pela agitação da extrema-direita para justificar os retrocessos que busca impor ao país, sua trajetória só pode lida como a de uma crescente moderação de propósitos e acomodação com o sistema político vigente, o que, de acordo com o gosto de cada um, será rotulado como amadurecimento ou como capitulação. Da forma como leio, a evolução do PT foi expressão da crescente consciência dos limites à transformação social no Brasil. O partido optou por fazer pouco (em relação a seu projeto inicial) em vez de se limitar a sonhar com muito. Mas, como a história se encarregou de mostrar, este caminho do pássaro na mão, em vez dos dois voando, também tinha suas armadilhas.
Elas são o pano de fundo do capítulo 5, que analisa o colapso da Nova República. Seu ponto de partida são as massivas manifestações de 2013, que entendo em primeiro lugar não como desencadeadoras de processos políticos novos, mas como sintomas de um mal-estar até então oculto. A revelação das insatisfações de diversos grupos com as opções políticas apresentadas e com a gestão do país alterou as estratégias dos agentes políticos. O PT, a despeito do atordoamento inicial, foi capaz de levar a presidente Dilma Rousseff à reeleição.
A oposição de direita, por sua vez, entendeu que um discurso extremista tinha alto potencial de mobilização e acabou embarcando no projeto golpista. Na interpretação que ofereço aqui, o radicalismo de direita, do qual Bolsonaro se fez emblema, não era hegemônico nas articulações para a derrubada de Dilma, mas oferecia o tempero indispensável sem o qual a agitação pró-impeachment não teria sido possível. Por isso, o governo Temer e as alternativas mais alinhadas a ele na sucessão presidencial de 2018 se viram incapazes de construir uma narrativa própria e acabaram engolidos pela “antipolítica” que era alardeada pela coalização heterogênea de forças que constituiu o bolsonarismo.
O capítulo 6 dedica mais atenção a este ator, a nova extrema-direita brasileira. Por mais que tenha sido, por quase toda a sua carreira, um parlamentar inexpressivo e de poucas luzes, Jair Bolsonaro agiu de forma deliberada e inteligente para unificá-la em torno de seu nome. Vinculado inicialmente ao velho anticomunismo, à nostalgia da ditadura militar e ao punitivismo penal, abraçou a agenda “moral” do conservadorismo religioso e apropriou-se também do discurso anticorrupção. Com um uso sagaz das possibilidades de manipulação política abertas pelas novas tecnologias da informação, criou um expressivo grupo de seguidores aguerridos.
Às vésperas da eleição, uniu-se aos ultraliberais, abraçando um fundamentalismo de mercado que era estranho à sua trajetória anterior. Esta nova extrema-direita, cujo amálgama Bolsonaro encarna, age na direção do fechamento do debate público, lançando mão de diferentes estratégias de intimidação, e da destruição dos consensos básicos que haviam sido definidos pelo pacto constitucional de 1988.
Um elemento que chama a atenção, não só no Brasil mas nos processos de desdemocratização em geral, é a baixa capacidade de reação da esquerda, que vê boa parte de sua base social potencial ser capturada pelo discurso da extrema-direita. O capítulo 7 discute as razões deste fenômeno, que são muitas e entrelaçadas de múltiplas formas: a derrota dos principais projetos da esquerda no século XX (tanto na social-democracia quanto no bolchevismo), a reconfiguração do mundo do trabalho, a pluralização dos eixos de luta contra as opressões sociais, a emergência de novos padrões de construção das subjetividades e de expressão pública, o fortalecimento das formas individualistas de ativismo associadas ao identitarismo.
Sem pretender dar respostas conclusivas a todo este universo de questões, o capítulo indica que, caso não seja capaz de apontar para além do capitalismo e da democracia liberal – isto é: caso não supere a posição de guardiã da ordem social hoje em crise – a esquerda estará fadada a permanecer na defensiva, acumulando derrotas importantes e vitórias apenas pontuais.
A conclusão, por fim, apresenta um exercício de antecipação de possíveis cenários para o Brasil após Bolsonaro – acreditando que, após um governo desastroso, cujo enorme custo em sofrimento para o país se tornou incontestável, o tema da volta à “normalidade” se impõe às principais forças políticas. Mas o percurso do livro indica que Bolsonaro é mais sintoma do que causa. Ele ou alguém similar continuará a assombrar o Brasil, caso as razões de seu sucesso não sejam enfrentadas – a decadência do debate público, a recusa aos enfrentamentos, a acomodação do campo popular ao possibilismo estreito que renuncia à busca pela transformação da correlação de forças.
Afinal, se a desdemocratização é fruto das insuficiências da democracia liberal, a verdadeira superação da crise exige não o retorno ao velho jogo fechado das elites, mas a edificação de uma ordem política que seja capaz de garantir uma aproximação mais robusta ao ideal de soberania popular, isto é, que encontre caminhos para o embate contra as diversas opressões sociais.
*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo).
Fonte: https://aterraeredonda.com.br/economia-socialista-2/
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