Foto: Reprodução/Wikimedia Commons
O carnaval — ou os desfiles das escolas de samba — este ano será comemorado durante o feriado de Tiradentes. Pode parecer estranho, mas é válido — e foi necessário
Texto: Marcello Rollemberg
Arte: Rebeca Fonseca
Oficialmente, o carnaval no Brasil aconteceu entre os dias 26 de fevereiro e 2 de março. Mas apenas oficialmente. O feriado até existiu em algumas cidades Brasil afora, mas ficou nisso. Até porque a pandemia ainda não acabou. E nem se determina seu fim por decreto. A covid-19 continua à solta, não está dominada e os cuidados ainda são necessários. Festa mutante como sempre, a folia de Momo — ou uma parcela significativa dela — exagerou: mudou de ares, mudou de mês, mudou de data. Pediu licença a Joaquim José da Silva Xavier e vai acontecer justamente no feriado de Tiradentes. Vinte e um de abril. Data estranha, mas válida. Culpa, lógico, desse impertinente coronavírus que matou centenas de milhares de brasileiros nos últimos dois anos e parece querer gastar todas as letras de alfabetos conhecidos para se metamorfosear e permanecer entre nós — desde março de 2020, para ser exato. Justamente logo após nosso último carnaval. Por culpa da pandemia, não houve carnaval em 2021 e o deste ano teve que se adequar a uma nova realidade. Governantes mexeram em datas, ajustaram aqui, esticaram ali e acharam que Tiradentes não se importaria – até porque ele já foi até enredo de escola de samba.
Nessa simbiose de datas nacionais, mantêm-se, de alguma forma, os tais “três dias de folia e brincadeira” – na verdade, quatro, se formos do dia 21 até o dia 24, com emenda de feriado e tudo. E o carnaval, essa manifestação social, cultural e econômica do País – que leva milhares às ruas e gera milhões de reais –, não vai passar em branco em mais um ano. E os desfiles das escolas do grupo especial em São Paulo e no Rio de Janeiro acontecem nos dias 22 e 23. Isso, sem se falar que o desfile de blocos em São Paulo, por exemplo, ficou para o segundo semestre, mas ainda sem data definida. A preocupação é a aglomeração de foliões extemporâneos: para se ter uma ideia, em 2020 São Paulo reuniu 15 milhões de pessoas em seu carnaval — 50% a mais que o Rio de Janeiro. Alguns puristas preferem dizer que não é, na verdade, “carnaval” — que teria sido em fevereiro, mas não foi —, mas sim “desfile de escolas de samba”. Ok. Mas vá convencer a todos que estiverem nas arquibancadas e nos camarotes dos sambódromos carioca e paulistano que aquilo que eles estão vendo e comemorando não é uma das mais autênticas demonstrações identitárias da cultura nacional.
E esse carnaval vai ser igual àqueles que passaram? Quem sabe? Mas sempre é uma oportunidade de se reavivar aquele clichê psicológico mencionado por Ivete Sangalo em uma entrevista ao jornal Correio, de Salvador, ano passado, quando o carnaval foi cancelado: “É quando conseguimos dar uma desopilada”, afirmou ela. Mas logo emendou, ressaltando aqueles tempos ainda mais duros de pandemia e lockdown: “Para o bem da própria festa, o recolhimento é uma forma consciente de lidar com a responsabilidade”. Recolhimento – está aí uma palavra (e um sentimento) que a mudança cronológica do carnaval deste ano acabou ressaltando – principalmente pela subversão do calendário.
Explica-se: como é sabido nos últimos, digamos, mil anos, depois da festa pagã do carnaval, a tal “festa da carne”, segue-se a quaresma, aquele período de recolhimento, jejum (metafórico ou não) e reflexão por 40 dias, até o domingo de Páscoa. Pois bem. Com as datas subvertidas e com o carnaval mais próximo de uma micareta oficial, trocaram-se as bolas: o recolhimento e a reflexão vieram (ou deveriam ter vindo) antes, para a festa acontecer na sequência. Não se trata de heresia. Apenas de adequação a novos tempos e à necessidade que o período exige. Mas se pensarmos que foi durante a quaresma na Idade Média que monges alemães criaram uma cerveja fortificada, escura e nutritiva chamada de marschbeer – ou “cerveja de março” – justamente para aguentarem o jejum de quarenta dias sem poder comer nada (ninguém falou em não poder beber), dá até para se encontrar uma relação – por mais canhestra que possa
A professora Raquel Rolnik - Foto: Reprodução
parecer – entre o malte e o lúpulo dos mosteiros medievais e o “samba, suor e cerveja” cantado por Caetano Veloso. Porque, no final das contas, a ordem dos fatores talvez só faça sentido no calendário. O que importa é a festa e o que ela representa. “O carnaval é um meio de as pessoas se apropriarem da cidade de uma forma diferente ou invertida em relação ao cotidiano”, afirmou Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e colunista da Rádio USP. “As regras que se aplicam ao cotidiano não valem naqueles poucos dias”, conceituou ela.
Foto: Reprodução/Flickr
“Em termos históricos, podemos pensar o carnaval enquanto manifestação cultural, mas também política e, por isso, houve e ainda hoje perdura a tentativa de um processo de controle e disciplinarização dos corpos festejantes. Tal concepção se assenta na elaboração de um discurso deslegitimador de longa duração, que aponta o festejo como alienado e alienante, buscando esvaziar a ideia de prática criativa inovadora, através do improviso e da resistência nas frestas da ordem cotidiana, no direito de ocupar e transformar a paisagem visual e sonora da cidade, articulando a ideia de pertencimento e identificação com vínculos afetivos, que contribui diretamente para a identidade cultural”, explicou, em artigo publicado ano passado no Jornal da USP, Marília Belmonte Magalhães da Silva, mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da FFLCH/USP. Mesmo que essa forma de apropriação à qual se referem Raquel Rolnik e Marília Belmonte seja fora de data, de forma restrita e que dependa de muitas negociações. Ainda assim, é uma ação substantiva e representativa.
Carnaval da revanche
Essa mudança forçada de datas, fazendo Momo entrar na avenida depois que o coelho da Páscoa já se recolheu, não é, no entanto, uma novidade no Brasil. Já houve adiamentos e cancelamentos momescos no País – mas aqueles determinados ano passado e esse ano são, certamente, os primeiros a serem respeitados. Ou os que chegaram mais perto disso. Uma tentativa frustrada de adiamento do carnaval carioca aconteceu em 1912. Uma semana antes de a folia começar, o Barão do Rio Branco morreu e as autoridades da época tiveram a ideia de pedir para Momo esperar até abril (como agora), numa forma de homenagear o morto ilustre. O que aconteceu? No sábado de carnaval o luto foi mandado às favas e foi todo mundo para as ruas de novo. Ah, sim: o tal carnaval de abril acabou acontecendo também, e o Rio de Janeiro teve duas festas em um mesmo ano.
Carnaval de 1912 - Foto: Reprodução/Biblioteca Nacional
Mas talvez a festa que melhor represente a vontade represada de comemorar algo, de extravasar – de “desopilar”, como lembrou Ivete Sangalo –, foi a de 1919. Razões não faltaram. Afinal, a Primeira Guerra Mundial havia acabado e, melhor que isso, a gripe espanhola, que matou dezenas de milhões de pessoas no mundo, tinha desaparecido tão rápido quanto surgira. “Foi o carnaval da revanche”, escreveu o jornalista Ruy Castro, se referindo ao alívio da população com o fim do mal que havia matado 15 mil pessoas no Rio de Janeiro – entre elas o recém-eleito presidente Rodrigues Alves. E haja revanche. “O povo foi para a rua com a necessidade de celebrar o fim daquela coisa terrível”, lembrou em uma entrevista ao jornal Correio Braziliense o professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e estudioso do carnaval Paulo Miguez. Aquela festa de alívio se tornou tão icônica que entrou no imaginário de muita gente – mesmo de pessoas que sequer eram nascidas quando ele aconteceu. “Carnaval vai, carnaval vem, e eu não consigo esquecer o carnaval que não vivi, não era nem nascido, o carnaval de 1919”, escreveu certa vez Carlos Heitor Cony (1926-2018). “Herdei do Mario Filho essa obsessão pelo carnaval de 1919, a que não assisti, como não assisti à batalha de Salamina e à morte de César. Não pude aproveitá-lo. Mesmo assim, tenho saudades dele”, explicou Cony em seu texto, fazendo referência ao amigo e jornalista Mario Filho, que, sim, aos 11 anos, aproveitou como pôde aquela festa mais do que centenária e que mereceu até manchete do jornal carioca Gazeta de Notícias, em sua edição de 2 de março daquele ano, uma Quarta-Feira de Cinzas: “Carnaval Triumphante”. Com pê-agá e tudo.
E o carnaval de 1919 acabou sendo considerado o maior de todos os tempos. E com direito a bônus: foi nele que surgiu o famoso e inusitado “Bloco do Eu Sozinho”, criado pelo jornalista Júlio Silva. O tal “bloco”, que virou expressão no vocabulário popular, desfilou por 53 carnavais seguidos pelas ruas cariocas, sempre com seu criador solitário – obviamente – e recusando qualquer tentativa de abraço ou de aproximação alheia. Ele não queria estar “mais ou menos sozinho”, afinal. Uma questão de ortodoxia carnavalesca.
Esse carnaval no dia de Tiradentes será uma versão atualizada daquela revanche de mais de um século atrás? Talvez não seja ainda o caso. Mas o fato é que aquele carnaval e este agora têm seus pontos de tangência. Tanto é assim que a Escola de Samba Unidos do Viradouro, de Niterói, e a última campeã do carnaval carioca, em 2020, tentará o bicampeonato com um enredo justamente inspirado no “carnaval da revanche” e nos escritos de Ruy Castro sobre o tema. O título do enredo? “Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”. Bem adequado.
Fonte: https://jornal.usp.br/cultura/uma-festa-para-alem-do-calendario/
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