Cora Rónai*
Lygia Fagundes Telles, em 1997 Foto: Sérgio Andrade / Agência O Globo
A presença das capivaras é o triunfo da natureza, a prova de que a Lagoa está Bem. Deveríamos agradecer por termos o privilégio da sua companhia
Lygia Fagundes Telles foi uma presença constante na minha vida. Era muito amiga dos meus pais — “O verão no aquário” é dedicado a eles — e, ao longo dos anos, nunca nos perdemos de vista. Estivemos juntas incontáveis vezes no Rio e em São Paulo e, uma vez, até em Paris, onde ela participava de um encontro de escritores brasileiros que eu por acaso cobria.
Uma das minhas melhores lembranças dela vem, justamente, dessa viagem: decidimos rifar uma das sessões da tarde e fugimos para comprar sapatos juntas, feito duas colegas que matam aula.
Andamos um bocado, vimos vitrines, fizemos uma pausa no meio do caminho para tomar café e comer croissant, entramos em todas as sapatarias, experimentamos uma quantidade de modelos diferentes e, finalmente, voltamos para o hotel vencidas, de mãos (ou pés?) abanando, porque não encontramos nada que servisse.
A tarde não foi perdida porque a aventura valeu: conversamos como nunca e rimos com aquela alegre irresponsabilidade de quem tinha coisa séria para fazer, mas conseguiu fugir da obrigação.
Mulher coragem:'Enfrentou tristezas, mas foi até o final com muita força', diz neta de Lygia Fagundes Telles no velório da autora
Em algum lugar tenho uma foto dela numa das lojas, cercada de caixas de sapatos — mas isso foi antes do digital, e vai encontrar uma foto entre tantos álbuns!
Lygia, como eu, também adorava gatos, e sempre que nos encontrávamos contávamos histórias do que os nossos patrões andavam aprontando.
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O senhor J. A. R. Jesus escreveu para o jornal. A sua carta foi publicada na edição de sábado e dizia o seguinte:
“Mais um ataque de capivaras a pedestres da Lagoa Rodrigo de Freitas. Será que vão permitir que esse espaço nobre da cidade se transforme num descontrolado criador de animal que já está beirando a condição de praga, que deveria estar num ambiente apropriado e não no espaço mais icônico do Rio.”
Longe de mim querer comprar briga com um Jesus, mas observo que não há, em toda a Zona Sul, ambiente mais apropriado para capivaras do que o que ele define como “espaço mais icônico do Rio”. As capivaras já estavam na Lagoa muito antes de os humanos chegarem, e espero que continuem, felizes, depois que já não estivermos mais por aqui.
O que está acontecendo entre as capivaras e os pedestres é que, depois de ocuparmos o seu espaço, não respeitamos sequer a distância mínima que elas pedem de nós.
Capivaras são pacíficas e incrivelmente tolerantes, considerando a quantidade de ameaças que sofrem. Aqui mesmo na Lagoa há pessoas que arrastam seus cachorros (quando não crianças) para cima delas e se aproximam da forma mais irresponsável.
Elas só querem pastar em paz.
Qualquer um de nós reagiria mal se fosse perpetuamente assediado e encurralado por cães na hora do almoço.
A presença das capivaras é o triunfo da natureza, a prova de que a Lagoa está viva e bem. Deveríamos agradecer todos os dias por termos o privilégio da sua companhia.
O tal “espaço nobre” que o senhor Jesus admira tem problemas muito mais sérios para enfrentar, a começar pela noção equivocada de que um “espaço nobre” deve ser uma área morta e estéril, onde se podem fincar quiosques duvidosos e “experiências gastronômicas” horrendas.
* Jornalista, escritora e fotógrafa brasileira.
Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/lygia-capivaras-1-25465287- 07/04/2022 - 04:30
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