Livro inclassificável de Benjamín Labatut mescla fatos e ficção
Por Márcio Ferrari — Para o Valor, de São Paulo
A primeira frase de “Quando deixamos de entender o mundo” tem força para se tornar clássica: “Durante um exame realizado nos meses anteriores aos julgamentos de Nuremberg, os médicos notaram que as unhas das mãos e pés de Hermann Göring estavam tingidas de um vermelho furioso”.
O líder nazista é o primeiro de lista de personagens reais que desfilam pelos cinco capítulos do livro, uma obra inclassificável em que momentos históricos cruciais do cálculo matemático e da pesquisa científica são infiltrados pela ficção.
Numa nota, o autor, Benjamín Labatut, chileno nascido na Holanda, revela que apenas um parágrafo do primeio capítulo é ficcional e que nos textos seguintes ele tomou “liberdades maiores, tentando permanecer fiel às ideias científicas expostas em cada um deles”.
A informação é desconcertante, entre outras razões porque o primeiro capítulo é aquele que compreende a maior quantidade de histórias aparentemente inverossímeis. Por exemplo: no século XIX, um ourives indiano, M.P. Prasad, tomou cianureto para se suicidar e aproveitou para revelar ao mundo qual é o gosto do veneno. “Queima a língua e tem gosto amargo”, deixou escrito numa nota encontrada ao lado do corpo morto. Uma busca no Google prova que a história é verídica. E a propósito: o vermelho das mãos e pés de Göring era esmalte, que passava nas unhas quando se fantasiava de Nero.
Depois de poucas páginas, percebe-se que “Quando deixamos de entender o mundo” vai além de uma coleção de curiosidades. O primeiro capítulo logo se encaminha para o assunto central do livro, as evoluções da matemática e da física, até o ponto em que passam a ser tormentos para os gênios debruçados sobre paradoxos que avançam para o terreno do inescrutável.
Longe de ser uma obra de divulgação da ciência, o livro de Labatut se torna uma sucessão de relatos de impasses encarados por alguns dos cérebros mais brilhantes da história da humanidade, sobretudo nos séculos XX e XXI.
Um exemplo recente é o do matemático japonês Shinichi Mochizuki, que na madrugada do dia 31 de agosto de 2012 publicou em seu blog uma importante conjectura que poria a nu relações que subjazem aos números. Depois de deixar embasbacadas hordas de matemáticos em todo o mundo, que ao analisarem a descoberta ficavam incapazes de falar sobre ela, Mochizuki teria decidido fechar seu blog, não sem antes anunciar que “mesmo na matemática certas coisas deviam permanecer ocultas, ‘para o bem de todos’”.
O último e mais longo capítulo, que leva o título do livro, trata da disputa entre Werner Heisenberg e Erwin Schrödinger em torno da teoria quântica. Heisenberg defendia a extravagante teoria de que os elétrons são ao mesmo tempo partículas e ondas, para desgosto de Schrödinger e ira de Albert Einstein, que cunhou a respeito do assunto a famosa frase “Deus não joga dados”.
O tempo provou, contudo, que Heisenberg estava certo. Ele compreendeu, segundo Labatut, que “o físico - como o poeta - não devia descobrir os fatos do mundo, mas apenas criar metáforas e conexões mentais”.
O escritor entremeia as áridas dissertações científicas com as histórias pessoais da linhagem de excêntricos que tem escrito a história da ciência. Seu estilo evoca W.G. Sebald, ao sobrepor o relato factual e o discurso poético, e Julio Cortázar, pelas descrições de precisão cirúrgica.
Os textos têm sutis formatos que dobram por cima de si mesmos, como nas manipulações teóricas do espaço-tempo elaboradas pelo astrônomo Karl Schwarzschild, que formulou em algumas horas uma solução exata das equações da teoria da relatividade geral. Schwarzschild concretizou o feito em meio a bombas e morteiros nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e morreu, pouco depois, de uma doença misteriosa que se alastrava em bolhas dentro e fora de seu corpo.
Labatut, prudentemente, encerra o livro com uma história pessoal sobre um fenômeno botânico de aparência singela. Mas, no momento, a física se iguala - talvez provisoriamente - ao triunfo de Heisenberg, para quem “uma parte fundamental do mundo obedeceria a regras que nunca conseguiríamos conhecer, como se um acaso ingovernável tivesse se aninhado no coração da matéria”.
Quando deixamos de entender o mundo
Benjamín Labatut Trad.: Paloma Vidal Todavia, 176 págs., R$ 59,90
Nenhum comentário:
Postar um comentário