DAVID COIMBRA*
Um dia, Dostoievski foi condenado à morte por fuzilamento. Aconteceu quando ele ainda não havia alcançado os 30 anos, a idade que, antes, era da maturidade e, hoje, é o do fim da adolescência. Dostoievski já escrevia, publicava suas histórias em revistas literárias, mas estava longe de ser o gênio que se tornou.
Deu-se que, naquele tempo, ele andava frequentando umas rodas de rapazes metidos a revolucionários. Havia muito disso na Rússia do século 19. A intelectualidade, em especial a intelectualidade estudantil, vivia discutindo como derrubar o regime despótico do czar.
Mas, e aí está o curioso, não era o caso de Dostoievski. Ele era um conservador. Admirava o czar e se dizia devoto da Igreja Ortodoxa. Mas reunia-se com os rebeldes, levado por amigos, talvez, ou talvez por singela curiosidade intelectual. A polícia secreta russa, porém, estava atenta a essas reuniões. Numa delas, os meganhas invadiram o recinto e prenderam todos. Arrastado para os calabouços do czar, Dostoievski foi interrogado brutalmente por sete meses, ao cabo dos quais ele e seus companheiros viram-se condenados à pena capital.
Na manhã aprazada para a execução, Dostoievski e seus companheiros fizeram a última refeição e, em seguida, foram conduzidos à praça pública e divididos em grupos. Um sacerdote lhes ministrou a extrema-unção. O primeiro grupo foi colocado diante do pelotão de fuzilamento. Os outros assistiam, angustiados, sabendo que não lhes restava mais do que cinco minutos de vida. Rufaram os tambores.
Preparar!
Apontar!
E eis que surge um mensageiro a galope, brandindo um documento na mão: o czar Nicolau I havia comutado a sentença de morte para um brando período de degredo na Sibéria. Era um chiste cruel. Era uma farsa.
Os momentos de aflição em que Dostoievski se achou na iminência de morrer mudaram-lhe a alma. Foi a partir daquela morte em vida que nasceu o escritor imortal. Suas grandes obras foram todas escritas depois do episódio, e em praticamente todas se percebe a influência do drama enfrentado pelo autor. Em O Idiota, esses últimos minutos da vida de um homem são descritos em pormenores. Em Recordações da Casa dos Mortos, ele conta o que viveu em seu período siberiano. No superclássico da literatura mundial de todos os tempos, Crime e Castigo, há uma intensa passagem pelo lugar que outro escritor russo igualmente sofredor chamaria de Arquipélago Gulag.
E assim por diante.
A literatura e a vida pessoal de Dostoievski foram transformadas radicalmente pelo período na prisão. Transformadas para melhor. Na Sibéria, Dostoievski adquiriu estofo para compor algumas das maiores obras de arte tecidas pelo espírito humano e, enfim, conheceu uma mulher que o amava, que aceitava seu vício pelo jogo e o acalentava quando sofria seus ataques de epilepsia.
A quase morte foi o que de melhor aconteceu na vida de Dostoievski.
E é assim que é. Os fortes podem extrair o melhor mesmo quando se lhes oferece o que há de pior.
É o princípio da Páscoa. Da ressurreição. Da vida renovada depois da morte aparente.
Texto originalmente publicado em 24 de abril de 2011
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=528b0957742d1e07e9e18a25d141ff87 - Imagem da Internet
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