segunda-feira, 25 de abril de 2022

Afetos e açúcares

 Leandro Karnal*

Máscara de Camille Claudel, de Auguste Rodin, um dos artistas que se aproximaram da  

Máscara de Camille Claudel, de Auguste Rodin, um dos artistas
 que se aproximaram da 'alma feminina' Foto: Musée Rodin

Diariamente, homens e mulheres negociam seu medo de adultério e de abandono


24 de abril de 2022 | 03h00

Chico Buarque foi criticado por feministas. Motivo? A letra do clássico Com Açúcar e Com Afeto. A música é de 1967 e foi dirigida à voz de Nara Leão. A polêmica foi forte.

Obras de arte estão inseridas no tempo. Possuem uma dívida com aquele momento. Artistas são seres reais que compartilham as dores e as delícias de cada geração. Se quiser ser muito chique, use a expressão Zeitgeist, o termo alemão para o espírito do tempo. Quer impressionar em grau platinum? Use o latim: Genius Seculi. Cada época e momento possuem seus próprios espíritos. Chico era uma pessoa aos 23 anos. A proximidade dos 80 pode tê-lo transformado. 

Volto à música. É uma narrativa com início, meio e fim. Os jovens não sabem, mas, naquela época, as músicas continham narrativas. Algumas enormes, como Geni e o Zepelim. O filho de Sérgio Buarque de Holanda imagina uma mulher na faina de manter o marido em casa. Faz um doce que sabe ser do gosto dele. Inútil: alegando trabalho e o sustento da companheira, ele parte para a rua. Após uma noite de vida boêmia e de flertes, ele volta implorando o perdão da resignada esposa. Vence o medo da solidão, o impulso materno-feminino, a vontade de cuidar e de possuir, proteger e restringir e ela sempre aceita: “E ao lhe ver assim cansado/

Maltrapilho e maltratado/ Como vou me aborrecer?/ Qual o quê/ Logo vou esquentar seu prato/ Dou um beijo em seu retrato/ E abro os meus braços pra você”. 

Chico sempre foi o cantor da alma feminina. Que outra alma encarnada em um com testosterona poderia conceber uma das letras mais sensíveis da Língua Portuguesa: “Oh pedaço de mim”? (Oh, metade arrancada de mim/ Leva o vulto teu/ Que a saudade é o revés de um parto/ A saudade é arrumar o quarto/ Do filho que já morreu.) Lirismo devastador e pungente.

Muitos homens se aproximaram da “alma feminina”. Quase sempre, foram gênios que projetaram muito do masculino (medo, em particular) sobre elas. Assim nasceram Capitu e Madame Bovary. Assim Rodin esculpiu e Picasso pintou as mulheres que maltratava na vida real. Assim foram feitas leis civis e eclesiásticas sobre corpos de fêmeas. Dessa forma eclodiram termos como “mulher honesta” e “abandono de lar”. Sim, a lei já não fala de dote ou da mulher honesta como categoria jurídica, apenas falou e formou mentes por muitas e muitas décadas. 

Há algo que só as mulheres percebem de si? Compare-se Cordulina (personagem do romance O Quinze, de Rachel de Queiroz) com Sinhá Vitória (Vidas Secas, Graciliano Ramos). Dois textos separados por poucos anos (1930-1938), dois autores do Nordeste e o mesmo sertão castigado pela aridez como pano de fundo. A temática social, no caso, parece tornar o gênero tema secundário. 

As esculturas da atormentada e talentosa Camille Claudel mostram, várias vezes, mulheres no desespero do abandono. Seu amante, Rodin, dá dimensão material ao beijo envolvente. O sonho masculino seria a entrega da companheira e o medo feminino seria o abandono?

O que Chico representou foi um medo e uma estratégia. Educada em sociedade patriarcal, a anônima esposa da música ama seu homem, tem medo de perdê-lo, sabe da sua inconstância e, mesmo assim, o perdoa. De alguma forma, ela responde a um vazio estimulado pelos modelos conservadores: melhor um marido inconstante do que estar sozinha. Hoje pergunto a apenas você, querida leitora: há alguma amiga sua com a mesma conclusão? Prefiro infidelidade à solidão? Conheço algumas. Também sei de amigos que relevam coisas por preguiça, medo ou amor. Seria mais forte o homem que, por gostar da sobremesa, sempre volta à esposa? Sempre dizem que o homem tem duas cabeças. E sangue para preencher apenas uma de cada vez. Acrescentaria: três, na verdade, porque o estômago é um órgão pensante no corpo masculino.

Nosso Zeitgeist exige isonomia de gêneros. É um grande avanço. Está nos discursos públicos, ainda não chegou aos lares. Diariamente, homens e mulheres negociam seu medo de adultério e de abandono. Uns fazem doces, outros trazem flores, alguns e algumas evitam comer os doces com medo de que seu corpo deixe de ser atraente. Somos crianças medrosas, carentes, solitárias. Os homens chamam o seu medo enorme de... masculinidade. As mulheres o denominam feminilidade. Outros dialogam com as duas vertentes e criam novas formas. Todos, todas e “todes” estamos aqui, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Ficou irritado ou irritada com “todes”. Gosto médio também. Apenas reconheço que nosso medo pode ter gramática, gênero, açúcar, afeto e cancelamentos póstumos. Encaro meu medo com ênfase. Ele sorri e volta, recalcado. Conhecer-me é minha única esperança na maturidade. Pelo menos, no fim, para não jogar sobre Chico minha própria desesperança e solidão. 

*Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Coragem da Esperança, entre outros

Fonte:  https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,afetos-e-acucares,70004046207

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