"Todas as grandes religiões do mundo afirmam ser baseadas
na revelação, e não apenas na razão. Infelizmente, a revelação tende a
ser entendida como um dado a mais de Deus que a ciência não consegue
alcançar. Bem entendida, a revelação é como se apaixonar: nós não nos
voluntariamos a nos apaixonar, mas simplesmente acontece, e fomos
'recrutados'", escreve George Dennis O'Brien, presidente emérito da Universidade de Rochester, em artigo publicado por Commonweal, 03-01-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Eis o artigo.
Não há melhor texto para começar um efervescente grupo de discussão local do que Talking God, de Gary Gutting. Gutting é professor de filosofia na Universidade de Notre Dame e colaborador do blogue de filosofia Stone, do The New York Times (e também do Commonweal). Talking God é uma compilação de doze entrevistas sobre questões de Deus e da religião realizadas por Gutting e publicadas na internet para o Stone. A maioria dos entrevistados são filósofos acadêmicos, com alguns historiadores e cientistas. No capítulo final, Gutting entrevista a si mesmo.
Por que a ênfase em filósofos? Gutting cita uma
pesquisa recente indicando "que 62 por cento dos filósofos são ateus (e
mais 11 por cento ‘tendem’ a esse ponto de vista.)" Se Deus sobreviver
às questões desse cético grupo, talvez a religião tenha futuro. Mas uma
coisa que as entrevistas sugerem é que a religião pode ter menos a ver
com a existência de Deus do que a maioria de nós acredita.
Alvin Plantinga, um filósofo analítico cristão,
defende que há argumentos contundentes, se não conclusivos, sobre a
existência de Deus e dos nossos deveres religiosos.
Em contrapartida, Howard Wettstein afirma que "a
crença não é uma noção judaica. "O Deus que existe ou não dos debates
entre a maioria dos teístas e ateístas "é uma ideia errada de Deus". A
participação na oração judaica não exige o apoio da metafísica
teológica.
John D. Caputo, descrito por Gutting como um "Derrideano Católico",
trabalha com a tradição fenomenológica continental. Para ele, também,
não importam as declarações sobre a existência ou não de Deus. São
irrelevantes para a religião genuína.
Para completar o assunto das religiões líderes abraâmicas, há uma entrevista fascinante com Sajjad Rivzi, diretor do Instituto de Estudos Islâmicos da Universidade de Exeter. Rivzi defende que Abraão é o fundador do Islã. E Mohammed, o seu profeta final. Rivzi acredita que o judaísmo e o cristianismo
são subprodutos do Islã. A palavra "Islã" pode ser traduzida como
"obediência" ou "submissão" à vontade de Deus. Considerando a obediência
de Abraão aos mandamentos de Deus para deixar seu lar
ancestral e mais tarde para sacrificar seu filho Isaac, ele representa o
próprio paradigma do Islamismo.
Religião-sem-Deus soa estranho para os cristãos, muçulmanos e muitos judeus que discordam de Wettstein, mas há grandes religiões não-teístas: o hinduísmo e o budismo, por exemplo.
Jonardon Ganeri, atual editor do The Oxford Handbook
of Indian Philosophy, aponta que os pressupostos ocidentais sobre a
estrutura da religião distorcem o hinduísmo. Os hindus acreditam no
"divino", mas também acreditam em muitos deuses - alguns grandes, outros
menores - ou mesmo não acreditam em nenhum deus. Não existe um "Deus
único e verdadeiro" no hinduísmo. "O hinduísmo é uma figueira em cuja
sombra da copa, apoiada não por um, mas por muitos troncos, é sustentada
uma grande diversidade de pensamentos e ações."
O budismo, em oposição tanto ao hinduísmo quanto às religiões ocidentais, é, segundo Jay Garfield, "uma religião sem divindade". Garfield,
que tem relações com a Universidade Central de Estudos Tibetanos dentre
suas várias afiliações acadêmicas, ressalta que para o Buda não só não há Deus,
como também não há ego ou alma. As práticas espirituais budistas têm a
intenção de nos despertar da ilusão do eu e dos seus desejos.
Gutting não entrevista apenas pessoas que pertencem a
religiões não-teístas; ele também conversa com vários ateus convictos -
filósofos que julgam haver boas razões para negar a existência de Deus.
Louise Anthony, que leciona na Universidade de Massachusetts, em Amherst,
perdeu sua fé católica na sua primeira aula de filosofia. Como poderia o
Deus todo-poderoso de pura bondade de sua fé infantil ser o Criador de
um mundo com tanta maldade? A ideia de um Deus assim é contraditória.
Ela não é uma simples agnóstica: "Eu defendo que sei que Deus não
existe." Se Anthony é um "ateu convicto", Gutting classifica Philip Kitcher, professor da Columbia University, como um "ateu moderado". Kitcher
não rejeita tanto a religião ou a crença em Deus quanto rejeita as
doutrinas religiosas, que, segundo ele, inevitavelmente geram
intermináveis confusões e conflitos. Há algo que ele chama de "religião
refinada", que não é uma crença na doutrina, "mas um compromisso de
promover valores mais duradouros".
Gutting observa que as entrevistas "enfatizam
principalmente a religião natural", ou seja, não colocam a "revelação"
como uma fonte de crença ou prática. Segundo ele, "a religião baseada na
revelação divina... simplifica a justificação de reivindicações
religiosas". A religião natural enfrenta o desafio da ciência natural, e
há entrevistados que são experts em física e biologia.
Tim Maudlin é um filósofo da ciência cujo trabalho
recente tem sido desenvolver uma linguagem matemática para descrever o
espaço e o tempo. Ele é franco em sua declaração de que "o ateísmo é a
posição padrão em qualquer investigação científica". Michael Ruse, autor de Darwinism as Religion,
considera a religião a partir do contexto da evolução biológica. Ele
destaca a possível função adaptativa da religião e admite que a ciência
"não explica tudo".
Ao final das entrevistas, o leitor pode compartilhar das visões dos dois últimos filósofos. O epistemólogo Keith DeRose, de Yale,
sugere que "nem teístas nem ateus sabem se Deus existe... não sabem
mesmo". Argumentos a favor ou contra a existência de Deus podem ser mais
ou menos plausíveis, mas nunca conclusivos.
O filósofo e historiador de Princeton Daniel Garber
se pauta na complexa história do ateísmo moderno. No século XVII, a
maioria dos filósofos eram religiosos. Se a maioria dos filósofos do
século XXI são ateus, não é por causa da ascensão da ciência, como
muitas vezes se defende, mas por causa de uma mudança cultural mais
ampla, provocada por eventos como a Revolução Industrial e as guerras
mundiais. Tanto quanto ele possa acreditar, Garber encontra uma barreira na questão do mal. Gutting pergunta a Garber se ele tende a aceitar a aposta de Pascal. Pascal
argumentou que considerando a escolha entre a existência ou não de
Deus, era mais racional apostar na sua existência. Se existir, se ganha
uma bênção infinita; se não, não se perde nada. Garber
não está apostando. "O que me preocupa... é a possibilidade de eu
corromper a minha alma, enganando-me ao acreditar que algo existe só
porque eu quero que exista. Para um filósofo, isto é uma espécie de
condenação na vida."
Depois de avaliar as várias opiniões apresentadas nas outras entrevistas, Gutting - o entrevistado - opta pelo agnosticismo. Um tanto surpreso, o Gutting entrevistador pergunta: "Como você pode ser agnóstico e dizer que é católico?" Ao que Gutting entrevistado responde: "A revelação 'fundamental' é o ideal moral expresso no relato bíblico da vida de Cristo".
Apesar de sua brevidade, Talking God contém uma rica variedade de ideias sobre Deus e religião.
Minha apresentação das diferentes posições das entrevistas é feita de
modo grosseiro: perde muito de suas nuances e sofisticação. Se você
realmente escolher este livro para discutir em grupo, reserve vários
encontros e não espere chegar a um consenso. Embora eu não hesite em
recomendar o livro, tenho que confessar que, por todo o vai e vem dos
argumentos, não tenho certeza de que se chegou ao assunto de Deus e da
religião. Considerando os pressupostos básicos da maioria, se não de
todos os interlocutores de Gutting, eu me pergunto o porquê de 27 por cento dos filósofos não serem ateus. O ateísmo faz parte do seu território.
Em um diálogo imaginário, Iris Murdoch pede que Platão caracterize
a religião e ele diz: "[a religião] tem de ser o centro de tudo... ela é
mais real do que nós... nós não somos voluntários, fomos recrutados".
Filósofos são "voluntários" a Deus e à religião. Eles querem
justificativas racionais para aceitar a causa. Este modo de Filosofia
foi justamente chamado de "ateísmo metodológico". Mesmo que se aceitem
argumentos em prol da existência de Deus e se conclua que a religião é
valiosa, se permanece um espectador racional, e não um participante
religioso. Há filósofos que rejeitam o modelo racional-espectador da
filosofia, mas eles são geralmente vistos com desconfiança pela maioria.
Pensadores como Kierkegaard, Nietzsche e, à sua própria maneira, Wittgenstein não eram filósofos racionais-espectadores. E Nietzsche não era um ateu comum: para ele, Deus estava morto.
Todas as grandes religiões do mundo afirmam ser baseadas na
revelação, e não apenas na razão. Infelizmente, a revelação tende a ser
entendida como um dado a mais de Deus que a ciência não consegue
alcançar. Bem entendida, a revelação é como se apaixonar: nós não nos
voluntariamos a nos apaixonar, mas simplesmente acontece, e fomos
"recrutados".
Dois dos entrevistados no livro de Gutting estão no rastro da "revelação". Howard Wettstein encontra a religião na oração. John Caputo encontra Deus não em doutrinas racionalizadas, mas em "uma forma intrínseca de viver... os desejos do nosso coração". Amém.
--------
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/563684-talking-god-voluntarios-ou-recrutados 09/01/2017
Imagem da Internet: Universidade de Rochester
Nenhum comentário:
Postar um comentário