Rodrigo Constantino*
“Sou um homem: nada do que é humano me é estranho.” – Terêncio
Vi neste domingo o penúltimo episódio da
série “Black Mirror”, a mais impactante dos últimos tempos. Aviso que o
texto contém um leve spoiler. É sobre um programa militar chamado Mass,
implantado nos soldados para que eles vejam os inimigos como animais,
monstros, os tais “roaches” (diminutivo de baratas).
Estatísticas mostram que muitos soldados
sequer chegam a disparar suas armas em combates, e os que matam
adversários costumam muitas vezes demonstrar problemas psicológicos
depois. Para que se tornem máquinas assassinas mais eficazes, a ideologia se
faz necessária, tanto o nacionalismo de um lado como a desumanização do
inimigo do outro. No caso, a tecnologia veio suplantar essa “falha”.
Não resta dúvida de que, se a própria
sobrevivência da civilização está em jogo, como no caso da Segunda
Guerra, nós só podemos torcer para que os militares do lado certo matem
sem dó nem piedade os nazistas. Somente pacifistas bobocas (e
hipócritas) poderiam dizer o contrário. Mas o dilema moral persiste: são
seres humanos morrendo, por mais que tentemos vê-los como bichos.
E, felizmente, há dentro de nós um lado
que se incomoda ao eliminar uma vida humana, à exceção dos psicopatas.
Não é jamais uma coisa trivial. Até que, repito, alguma ideologia venha transformar isso, ao longo de muita propaganda e lavagem cerebral, normalmente desumanizando o alvo.
Mais spoiler agora: o soldado que
descobre a verdade não consegue mais matar os “roaches” com a mesma
facilidade, pois enxerga a pessoa por trás do “monstro”. Mas quando o
responsável pelo programa o obriga a remoer as imagens reais em sua cela, ele escolhe a
ficção, a fantasia, o programa novamente, para voltar a ver o mundo
pela lente tecnológica (ou ideológica). A realidade pode ser muito
insuportável mesmo.
Escrevi uma resenha do instigante livro Less Than Human, de David Livingstone Smith, que tem tudo a ver com o assunto e vinha à memória a cada cena do episódio. Eis um trecho:
A
desumanização é extremamente perigosa justamente porque oferece ao
cérebro os meios pelos quais podemos superar as restrições morais contra
os atos de violência. Ao verem comunidades inteiras como sub-humanas,
os humanos driblam essa ambivalência e podem, agora, exterminar seus
inimigos sem remorso, como quem elimina um germe. O processo de
desumanização ocorre em situações em que desejamos agredir determinado
grupo, mas somos contidos por inibições morais. Isso se dá num nível
emotivo, não estritamente racional.
Como
efetivamente conter tais impulsos? O autor não oferece um manual. Ele
reconhece que não é algo tão simples assim, que não basta “contar
histórias boas”, ignorando a questão sobre nossa natureza humana. Mas
sem dúvida em nada ajuda a retórica tribal de “nós contra eles”, que
retrata “eles” como bichos tidos como inferiores. As “metáforas” que
usamos para descrever nossos adversários como ratos, como insetos, como
vermes que devem ser eliminados, não contribuem muito para a vitória da
civilização sobre a barbárie. São perigosas, para dizer o mínimo.
Apontemos
os erros, os absurdos de nossos adversários. Reconheçamos a
monstruosidade de certas ideologias. Ataquemos o comunismo, o
socialismo, o nacional-socialismo, o fascismo, o radicalismo islâmico.
Mas tomemos o cuidado de não transformarmos seus seguidores em bichos
sub-humanos, que precisam ser exterminados. São, apesar de tudo, seres
humanos. Apesar de, no mundo moderno que muitos deles ajudaram a criar,
talvez seja mais valioso ser considerado um animal mesmo, já que seres
humanos estão em baixa na escala de valores.
E aqui acrescento isso: há em curso um
esforço crescente de se humanizar bichos ao mesmo tempo que reduzimos o
valor do ser humano, tido como a maior “praga” do planeta. Chegará o dia
em que a morte de uma galinha despertará muito mais comoção, revolta e
indignação do que a morte de milhões de fetos humanos (em alguns
círculos “progressistas” esse dia já chegou).
A antropomorfização dos animais, como
vemos nos filmes da Disney, turbinada pelo vegetarianismo e a ideologia
de Peter Singer, ainda vai tornar o ovo da tartaruga algo mais
importante do que o ovo humano, podem apostar. Enquanto isso, vamos
banalizando a vida humana, retirando o sagrado dela. E não se enganem: o
veganismo radical não é apenas elevar o papel dos bichos na hierarquia de valores, mas também diminuir a dos humanos, que deixam de ser especiais. Se somos “apenas diferentes” dos ratos, não somos tão nobres assim.
E isso, lamento dizer, não é
exclusividade da esquerda. É triste ver muita gente da direita,
inclusive conservadores religiosos, desumanizando bandidos, rindo de
massacres horrendos de marginais dentro das prisões, ou então jogando os
muçulmanos no mesmo saco podre, como se fossem todos terroristas e,
portanto, pudessem ser simplesmente eliminados. São mais de um bilhão
de seres humanos, não custa lembrar.
Os “roaches” foram os judeus para os
nazistas, os negros ou deficientes para muitos eugenistas (inclusive
para aquela que fundou a Planned Parenthood, máquina de abortos adorada
pela esquerda), marginais para essa ala da direita, e por aí vai. Claro
que há uma grande diferença aqui: bandidos são incluídos nesse grupo por
seus atos, não pela cor de sua pele ou sua religião. Ainda
assim é importante lembrar: são seres humanos também, ainda que
“monstruosos”, e merecem ser severamente punidos por seus crimes, mas
sempre dentro das leis e com dignidade.
Quando abandonamos essa postura, é a nós
mesmos que estamos diminuindo, é nossa civilização que estamos
atacando. Entendo o desejo de ver esses bandidos sendo torturados ou
mortos por outros bandidos, ainda mais num país em que a impunidade
campeia, mas o freio entre o instinto e a ação é o que nos diferencia
deles. Como tratamos nossos adversários ou mesmo nossos inimigos diz
muito sobre nós. É um espelho de nossa alma. Enxergá-los como baratas,
como um vírus, pode facilitar no processo de sua eliminação, mas acaba
por nos transformar no caminho, por matar algo humano em nós mesmos, algo mais elevado do que apenas nosso lado animal e instintivo. Por isso somos melhores do que os outros animais: pois temos um código de moral e ética.
A esquerda tem tratado com mais dignidade os animais e os marginais, vistos como “vítimas da sociedade”, do que os seres humanos decentes,
e isso é um absurdo, algo asqueroso, uma afronta à civilização. Mas não
é por isso que devemos cair no outro extremo e passar a tratar alguns
seres humanos, por mais equivocados que estejam, por mais monstruosos
que pareçam, como ratos ou baratas. Sou mais simpático ao conceito
cristão de que toda vida humana é sagrada.
Aqueles que desrespeitam essa regra
devem ser punidos, talvez até com a pena de morte. Mas dentro do sistema
legal, com o devido processo legal, e de uma forma que não anule a
dignidade humana. A era dos linchamentos públicos e das torturas com
plateia ficou para trás, ou assim se espera.
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* Economista pela PUC com MBA de Finanças pelo IBMEC, trabalhou por vários
anos no mercado financeiro. É autor de vários livros, entre eles o
best-seller “Esquerda Caviar” e a coletânea “Contra a maré vermelha”.
Contribuiu para veículos como Veja.com, jornal O Globo e Gazeta do Povo.
Preside o Conselho Deliberativo do Instituto Liberal.
Fonte: http://rodrigoconstantino.com/artigos/perigosa-desumanizacao-de-seres-humanos-e-humanizacao-dos-animais/?utm_medium=feed&utm_source=feedpress.me&utm_campaign=Feed%3A+rconstantino 09/01/2017
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