Thomaz Wood Jr.*
O cinema, a tevê e a internet passaram a ter mais valor do que a realidade
Dois livros do século XX, contundentes e proféticos,
ajudam a desvendar a sociedade da imagem e
do espetáculo do século XXI
O ano de 2016 foi profícuo em análises sobre a natureza ficcional da política contemporânea. A revista britânica The Economist partiu do óbvio: políticos sempre contaram mentiras. O problema é que agora eles parecem estar abandonando inteiramente o lastro da verdade.
Megan Garber, escrevendo para a revista norte-americana The Atlantic, relembrou oportunamente a obra clássica de Daniel Boorstin, publicada em 1962 – The Image: A guide to pseudo-events in America. Ao analisar o avanço da fotografia, do cinema, da tevê e da propaganda,
o historiador alertou que a nossa sociedade estava substituindo a
realidade por eventos dramatizados e trocando heróis por celebridades.
Boorstin observou que
o dia a dia passou a ser habitado por pseudoeventos, acontecimentos não
espontâneos que guardam uma relação ambígua com a realidade e são
criados com o propósito específico de seduzir ou manipular a audiência.
Pseudoeventos são mais dramáticos e atraentes que eventos espontâneos.
A imagem, seja um filme, uma foto ou uma notícia, é um
simulacro da realidade, produzida para ser mais dramática e sedutora do
que o fato. A imagem não é necessariamente uma mentira, mas pode ser. O
notável é que o lastro do fato é pouco relevante.
O escritor italiano Umberto Eco
certa vez observou que em um passeio pela reconstituição do Delta do
Mississippi, em um dos parques temáticos Disney é possível ver mais
jacarés do que no ambiente natural original e isso torna o fato de serem
mecânicos completamente secundário.
Outra obra profética do século XX foi La Société du Spectacle,
do pensador francês Guy Debord. O livro foi publicado em 1967, cinco
anos após o de Boorstin. A espetacularização, para Debord, é
consequência da evolução das condições de produção, que quebra a unidade
de vida, extraindo as imagens e agrupando-as em uma grande e única
corrente.
O espetáculo produz uma representação
superior ao mundo real. Cria-se dessa forma um mundo à parte, onde a
relação entre os indivíduos é mediada por imagens.
O espetáculo, ainda segundo Debord, manifesta-se na mídia
de notícias, na propaganda, nas atividades culturais e nas interações
pessoais. O espetáculo é uma narrativa totalizante que justifica,
legitima e celebra o sistema. Toda a sociedade e os fenômenos sociais
estão baseados e são permeados pelo espetáculo.
O habitante da sociedade do espetáculo é o espectador, ser
que não vive, apenas contempla. Ele é eterno coadjuvante, pressionado a
encontrar o seu papel e a desempenhá-lo. O espetáculo fornece o
roteiro, o ato e a fala, e ainda avalia o desempenho, de acordo com
critérios de excelência em representação.
O próprio espetáculo determina o que são necessidades e
desejos válidos e adequados. No espetáculo, o indivíduo sem
individualidade procura conforto para suas necessidades e seus desejos. É
atendido pela experiência de emoções tão fortes quanto rasas.
A sociedade da imagem e do espetáculo, da pós-verdade, é uma estrutura disciplinadora, habitada por voyeurs que espiam obsessivamente a si mesmos e uns aos outros, produzindo e assimilando imagens.
Nas telas das tevês, dos computadores e dos telefones celulares, o espectador-voyeur penetra no mundo do personagem-voyeur. Voyeurs são espias e objetos de espia. Tudo que era diretamente vivido, como observou Debord, foi reduzido a mera representação.
A imagem e o espetáculo avançam. O
cinema já teve o monopólio de imagens. Hoje divide espaço com outros
canais de produção e geração de imagens, como a tevê e a internet. O
fluxo imagético não tem início nem fim.
A imagem não representa mais nada em especial, ela existe
por e para ela mesma. Tem a finalidade de saciar uma demanda ansiosa por
entretenimento e por emoções. E a sociedade a produz e consome, em
notáveis ritos de auto-hipnose.
O cinema, a tevê e a internet passaram
a permitir um prodígio: viver em um mundo no qual o simulacro tem mais
valor do que a realidade. Medimos a realidade por sua contraparte
virtual. O risco para uma sociedade maciçamente orientada para a imagem é
a perda da noção de realidade ou, ainda pior, a perda da preocupação
com a perda da noção de realidade.
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* Colunista da CCapital. Escreve sobre gestão e o mundo da administração.
thomaz.wood@fgv.br
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/revista/936/para-entender-a-pos-verdade?utm_campaign=CartaCapital+Newsletter&utm_content=Para+entender+a+p%C3%B3s-verdade+%E2%80%94+CartaCapital+%282%29&utm_medium=email&utm_source=EmailMarketing&utm_term=Newsletter+25.01.2017
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