Ricardo Lísias*
Enfim, não encontrei na ampla obra de
Zygmunt Bauman todas as explicações que eu buscava para o mal-estar que
não nos abandona. Não vou achar em lugar nenhum, embora vá teimar para
sempre
Li Zygmunt Bauman pela primeira vez quando eu
ainda tinha esperança de encontrar uma explicação ampla o suficiente
para abarcar o meu desgosto com o mundo contemporâneo. Acho que foi bem
no final do século passado. Eu tinha acabado de me formar, estava de
férias às vésperas de começar o mestrado na Unicamp e viajara pela
primeira vez à Europa. Sozinho, jovem, com pouco dinheiro e tomando
banho a cada três dias, fui parado e interrogado com certa violência
verbal em Portugal, na Alemanha, na Eslováquia e depois saindo da
Hungria, em direção à Holanda. Na pior abordagem, o oficial de alfândega
afirmou que, sendo um brasileiro naquelas condições, eu realmente só
poderia me tornar um imigrante ilegal.
Aliás, pensando agora para fazer esse texto, percebo
como essa mania de procurar análises que abarquem uma certa totalidade
não me abandona: faz semanas que não paro de procurar um texto que me
explique, com todas as nuances possíveis, como Donald Trump conseguiu
ser eleito...
Com certeza, escolhi Bauman por causa do número de livros publicados.
Entre os títulos em inglês e português, encontrei por volta de dez.
Comecei por O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Gostei bastante. Em
contraste com o clássico de Freud, O Mal-Estar na Civilização, aqui o
filósofo polonês defende que a insegurança e o susto com as rápidas
transformações da sociedade contemporânea marcam o desejo por liberdade
que caracteriza o nosso tempo, e também a dificuldade que temos em
encontrá-la.
Logo depois, li o que é para mim o seu melhor título:
Ética Pós-Moderna. Nele, Bauman defende que para renovarmos a forma como
observamos nossa vida em comum, precisamos refazer o sentido de muitos
conceitos. Um deles é o de “moral”, sem dúvida cada vez mais desgastado.
Concordo com isso: ou abandonamos o sentido que a sociedade deu a essa
palavra, ou continuaremos assistindo a crimes de ódio.
Desde então, os livros de Bauman traduzidos no Brasil foram se
multiplicando, lançados quase todos pela editora Jorge Zahar. Com
certeza são mais de 40! Infelizmente, por conta da palavra “líquido”,
que se repete em muitos de seus títulos, seu pensamento acabou envolto
em uma espécie de lugar-comum: o de que atualmente tudo é fluido e nos
escorre pelas mãos. É uma simplificação que não alcança a complexidade
de seu pensamento. De forma geral, para Bauman vivemos em um mundo em
que a solidez está perdida e nem sempre é muito fácil organizar a vida
diante da areia movediça que tomou conta dos nossos dias.
Amor Líquido é o seu título mais lido, por motivos
evidentes: as pessoas querem saber por que os afetos parecem hoje tão
frágeis. Outros títulos, porém, me parecem bastante urgentes também.
Segundo as notícias, boa parte dos leitores desse artigo tem alguma
dívida. Vale a pena, assim, ler Capitalismo Parasitário, sobretudo o
ótimo texto sobre cartões de crédito.
Recentemente,
saiu no Brasil Estranhos à Nossa Porta, um texto ágil sobre a crise dos
refugiados, certamente o problema humanitário mais grave do nosso tempo.
Aqui, a questão do movimento é concreta: as pessoas estão precisando se
mover para continuar vivas. De forma aguda, um conceito filosófico se
torna, ao contrário do que costuma acontecer, em um dado de realidade. É
provável que aqui esteja a amarga comprovação dos acertos do pensamento
de Bauman. Até a imagem do líquido acabou duramente precisa: basta
vermos que a maioria dos refugiados foge pelo mar, de onde muitos não
escapam.
Enfim, não encontrei na ampla obra de Zygmunt Bauman
todas as explicações que eu buscava para o mal-estar que não nos
abandona. Não vou achar em lugar nenhum, embora vá teimar para sempre.
Mas em seus livros estão muitas observações lúcidas, a coragem para
tratar de temas bastante delicados, uma sociologia antenada com o nosso
tempo e, mais ainda, algum conforto diante de um mundo cada vez mais
cinzento. Cabe ainda um momento para observar a incrível coerência de
seu pensamento: alguém que enxergou a fluidez contemporânea e a colocou
como uma das bases de seu pensamento só poderia parar de escrever quando
realmente a morte impedisse. É o que acaba de acontecer.
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* RICARDO LÍSIAS É ESCRITOR, AUTOR DE, ENTRE OUTROS, A VISTA PARTICULAR (EDITORA ALFAGUARA/COMPANHIA DAS LETRAS)
Foto: Eloy Alonso/Reuters Zygmunt Bauman.
Fonte: http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,analise-zygmunt-bauman-representava-algum-conforto-em-um-mundo-cada-vez-mais-cinzento,10000099041
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