Marcelo Crivella toma posse como prefeito do Rio de Janeiro. Fernando Frazão Agência Brasil
Um Deus curinga dos governantes para se esquivar de suas responsabilidades e adormecer os mais desamparados é um Deus perverso
Talvez seja a sensação de impotência, a falta de confiança
na política ou a forte influência das Igrejas Evangélicas, a verdade é
que o Brasil parece se refugiar cada vez mais em Deus, algo que não
desagrada seus governantes e muitos até exploram isso.
No
dia primeiro de janeiro, quando milhares de prefeitos assumiram seus
cargos, uma das palavras que mais foram repetidas em seus discursos foi
“Deus”. E também a mais aplaudida.
“Não tenho medo de assumir essa responsabilidade porque Deus
está comigo”; “Vamos mudar esta cidade porque Deus decidiu”, foram
frases que se repetiram em muitos dos discursos dos recém-eleitos.
No Rio de Janeiro, o novo prefeito, o bispo evangélico Marcello Crivella, citou Deus seis vezes em oito minutos de seu discurso.
Disse a uma multidão entusiasmada: “Tenho certeza de que Deus estará
comigo enquanto governar”. E algo incomum nesses casos, em um país laico
por Constituição, o evangélico Crivella abriu o ato recitando o Pai
Nosso, um aceno para os católicos.
Não só aqueles que tomaram posse apelaram a Deus, mas também
aqueles que se despediram depois de ter perdido a eleição. Um caso
emblemático foi o da prefeita da pequena cidade de Sapezal (MT), Ilma
Grisoste, 55 anos, formada em Pedagogia e doutora em Psicopedagogia.
Em vez de entregar as chaves da cidade ao seu sucessor,
emitiu um documento no qual afirmava: “Decreto a entrega das chaves
desta cidade a Deus”. E acrescentou: “Desejo que esta cidade pertença a
Deus e que toda a prefeitura esteja sob a proteção do Todo-Poderoso”.
Mais ainda: “Cancelo em nome de Jesus todos os pactos feitos por
qualquer outro Deus ou entidade religiosa”.
Então, não é de estranhar que 90% dos brasileiros pensem que
ser rico ou pobre depende de Deus, de acordo com uma pesquisa recente
da Datafolha, publicada no jornal Folha de S. Paulo.
Esta pesquisa indica que nove de cada dez brasileiros estão
convencidos de que “seu sucesso financeiro se deve a Deus”. E o mais
estranho é que a alegação foi feita não só pelos crentes, mas também por
70% das pessoas sem religião e 23% daqueles que se declaram ateus.
E não apenas os mais pobres e menos escolarizados atribuem a
Deus seu sucesso ou fracasso econômico, mas também 77% das pessoas que
concluíram a universidade e ganham até 8.800 reais.
Esse Deus acaba sendo um perigo porque anula os próprios
esforços das pessoas para avançar na vida, enquanto elimina sua
capacidade de protestar e se rebelar contra o poder injusto.
Esse Deus empurra os pobres à resignação porque seria ele, e
não o esforço e capacitação pessoal, ou a luta por seus direitos, que
decide seu presente e seu futuro.
Os políticos devem ser os mais felizes com essa convicção de
90% dos brasileiros. Para que se esforçar muito, realizar reformas
sociais que melhorem a vida das pessoas, se no final é Deus que decide
sobre as finanças delas?
Ou para que melhorar a educação e elevar o nível cultural do
povo, se 77% das pessoas com título universitário também acham que tudo
depende de Deus?
Em qualquer sociedade laica do mundo, especialmente aquelas
que possuem melhores índices de qualidade de vida, a situação econômica
dos indivíduos e das famílias não depende de Deus, mas do esforço
pessoal de cada um, sua capacidade e preparação profissional, bem como
dos sistemas econômicos e políticos em que vivem.
Como diz o ditado espanhol: “A Deus rogando, mas com martelo
batendo”. Ou, como respondeu Jesus (tão traído e distorcido nos
discursos dos políticos brasileiros) aos judeus: “Dê a César o que é de
César e a Deus o que é de Deus”.
O resto é vontade de tirar sarro dos pobres e dar ao poder o álibi de que é Deus que vai cuidar deles.
A fé religiosa deveria ser, ao contrário, a primeira a
exigir que o poder seja desmascarado sempre que pretende alienar as
consciências com falsas promessas messiânicas ou perigosas bajulações
aos pobres.
Um Deus curinga dos governantes para se esquivar de suas responsabilidades e adormecer os mais desamparados é um Deus perverso.
-------------------------------
Texto por Juan Arias
Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/02/opinion/1483392817_011135.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário