segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Esqueça a pen. O futuro da memória está nos átomo


João Francisco Gomes*
 
É o disco rígido mais pequeno alguma vez criado e poderá revolucionar o armazenamento de dados. Investigadores em Braga e na Holanda garantem ao Observador que o caminho é (mesmo) por aqui.


Imagine todos os livros alguma vez escritos guardados num único disco rígido, do tamanho de um dedo ou de um selo postal. Ou a possibilidade de armazenar numa única pen a sua vida inteira, filmada em alta definição. Parece impossível (ou algo retirado de um episódio da série Black Mirror), mas está cada vez mais próximo de acontecer. Na Universidade de Delft, na Holanda, um grupo de investigadores conseguiu criar um dispositivo capaz de armazenar cada bit num único átomo de cloro. É a memória atómica – “é jogar futebol com os átomos“, diz Paulo Freitas, diretor de um laboratório em Braga que está a colaborar com este projeto.

“Estamos a entrar numa era muito estimulante, em que temos tecnologia suficientemente precisa para controlar a matéria à escala atómica”, defendem os investigadores envolvidos na criação da tecnologia, ao Observador. “É a memória mais densa que se pode criar“. O primeiro protótipo está feito, e não podia ter sido preenchido com uma mensagem mais adequada: quando, em 1959, o físico Richard Feynman desafiou a comunidade científica a construir o mundo à menor escala possível, não imaginou que, seis décadas depois, o seu famoso discurso estivesse gravado no mais pequeno disco rígido alguma vez criado. Mas é precisamente isso que acaba de acontecer.
 
O ENIAC, o primeiro computador digital. Pesava trinta toneladas e servia para cálculos relativamente básicos.
 (Wikimedia Commons) 

Para os leigos, a explicação técnica pode parecer complexa. Mas vamos lá: a unidade mínima de informação digital é o bit zero ou um — e é algo que tem corpo físico, ocupa espaço, portanto, e é composto por “milhares de átomos“, explica ao Observador o investigador holandês Sander Otte, que liderou a investigação.

Paulo Freitas, diretor executivo do Laboratório Ibérico de Nanotecnologia (INL), em Braga, ajuda-nos a perceber a ideia: “Temos, hoje em dia, discos duros, onde armazenamos a informação a nível magnético, na ordem de um terabit [um bilião de bits] por polegada quadrada” [o tamanho de uma moeda de 2 euros, sensivelmente]. Quando vamos a uma loja comprar um disco ou uma pen drive, levamos para casa um dispositivo que se baseia nesta ordem de grandeza.

O progresso nesta área está a ser feito, sobretudo, a tentar comprimir cada vez mais o espaço físico ocupado por um bit. Ou seja, sem sair da tecnologia atual, a maioria dos investigadores quer fazer caber cada vez mais informação no mesmo espaço. Contudo, em paralelo, há quem esteja a querer uma mudança radical e a procurar alternativas — é daí que vem a memória atómica.

"Atualmente, um bit ocupa um espaço de 20 por 20 nanómetros. As tecnologias que estão no mercado continuam a evoluir, mantendo esses tamanhos. Já vamos nos 11 nanómetros, 
mas vai chegar aos quatro ou cinco" 
 Paulo Freitas, diretor-executivo do INL 

Com este protótipo, “precisamos, essencialmente, de um átomo por cada bit“, destaca Sander Otte, sublinhando que “é muito, muito menor” do que o que existe atualmente. Jose Lado, investigador do Laboratório Ibérico de Nanotecnologia (que funciona em Braga, e que apoiou a equipa holandesa no desenvolvimento do projeto), sublinha que “esta tecnologia permite uma densidade de armazenamento 500 vezes maior do que a que a tecnologia atual permite“.
500 x

A densidade de armazenamento deste protótipo é 500 vezes maior do que os dispositivos de memória existentes atualmente. Isto quer dizer que no mesmo espaço físico podemos armazenar 500 vezes mais informação.

Há várias equipas de investigadores, em todo o mundo, a explorar alternativas — “estamos todos à procura do mesmo”, diz Paulo Freitas — mas esta tecnologia desenvolvida em Delft é especial. “A grande diferença deste trabalho é que foi a primeira vez que se conseguiu fazer isto de forma semiautomática. Fez-se um programa. Uma pontinha que corre numa superfície e que consegue manipular os átomos, escrevendo o que queremos escrever”, esclarece o especialista.

Este é um passo natural na evolução da memória. O primeiro computador digital do mundo, o ENIAC, criado nos anos 40, pesava trinta toneladas e só servia para cálculos relativamente básicos, e nem sequer armazenava informação. Até chegar à mais pequena pen drive, passando pelos discos rígidos, pelas disquetes e pelos CDs, foi um salto.

Memória digital à escala do átomo. Como funciona?

Recuemos um pouco. Como nos explica Sander Otte, “um dispositivo de armazenamento tradicional guarda os dados em bits que podem ser zero ou um. Por exemplo: nos discos rígidos, os zeros e os uns estão codificados na direção da magnetização de pequenos pedaços de material magnético. E esses bits podem ser combinados para formar letras. Por exemplo, 01100101 representa a letra ‘e’. Desta forma, pode armazenar-se textos inteiros num disco rígido”. A evolução tem sido no sentido de reduzir o espaço necessário para armazenar um bit.

É aqui que entra a equipa da Universidade de Delft. “A memória que desenvolvemos funciona de uma forma semelhante, exceto que neste caso os bits estão codificados na posição de átomos individuais“, destaca Sander Otte. O grupo criou um dispositivo que consiste, de uma forma simples, numa placa de cobre onde são colocados átomos de cloro. “Alguns átomos podem ocupar uma de duas posições, que representam o zero e o um”, explica o investigador.

É através da posição dos átomos que se formam os bytes — correspondentes a oito bits. Foi nesta fase do processo que, aos seis investigadores que trabalhavam a partir da Holanda, se juntaram dois especialistas em nanotecnologia, a partir de Braga, que criaram um modelo teórico daquilo que viria a ser a disposição dos átomos na superfície de cobre. “Calculámos como eram as interações entre os átomos e como elas possibilitaram a construção de uma memória atómica estável”, explica ao Observador o investigador Jose Lado, do INL.

A tecnologia utilizada neste dispositivo já existe (a de manipular átomos individualmente), pelo menos, há 25 anos, explica Sander Otte. “Mas, nesses 25 anos, a técnica nunca foi desenvolvida de forma a ser utilizada à escala”, porque “a manipulação atómica não era confiável e era difícil de automatizar”. Mas uma descoberta adicional permitiu contornar esta dificuldade: “Descobrimos que é possível manipular átomos em falta, ou seja, orifícios. Isto torna a técnica muito mais estável e, por isso, confiável”, destaca o investigador holandês.
 
Sander Otte e Floris Kalff, outro dos investigadores holandeses envolvidos na investigação. "Podemos guardar, teoricamente, 
todos os livros do mundo num polegar", explica Sander Otte. 

É jogar futebol com os átomos“, descreve Paulo Freitas, sublinhando que “há muito tempo que se fala deste tipo de memória”. Mas, “até agora, nunca houve nada que chegasse perto de um protótipo, e, atualmente, se quiser escrever uma palavra, já é possível” fazê-lo neste dispositivo.

“Uma era muito estimulante”

“Era impensável há 20 anos”, admite Jose Lado, que acredita que “nos próximos anos vamos ver que os componentes das novas tecnologias se podem tornar em átomos individuais, dando origem à engenharia atómica e à engenharia física quântica”. Trata-se de ganhar a capacidade de manipular a matéria na sua unidade mais elementar: “É formidável que o ser humano vá basear a sua tecnologia na manipulação do fabrico da própria matéria, cada átomo individual”. E a evolução deu-se de forma relativamente rápida. “Observámos as primeiras trocas atómicas destes átomos em novembro de 2015. Apenas dois meses depois, em janeiro de 2016, já tínhamos construído um quilobyte inteiro”, recorda Sander Otte.

É formidável que o ser humano vá basear a sua tecnologia 
na manipulação do fabrico da própria matéria, 
cada átomo individual.
Jose Lado, investigador do INL 

Trata-se de uma tecnologia que ainda deverá, contudo, demorar a chegar ao público. Sander Otte admite que prefere ser “cauteloso”, porque ainda estamos perante uma “primeira demonstração científica”. Para o investigador holandês, “a técnica parece muito promissora, mas ainda assim ainda é preciso muito para que possa ser integrada numa tecnologia útil”. Por isso, “a mensagem mais importante neste momento é que agora conseguimos organizar e tratar o mundo a um nível de precisão que era impensável antes”, o que “pode levar a todo o tipo de novas ideias e invenções, que podem ir muito além do mero armazenamento de dados“.

Também Jose Lado prefere avançar com cuidado no que toca à possibilidade de a tecnologia ser comercializada num futuro muito próximo. “Até aqui, a experiência foi feita a temperaturas muito baixas”, e necessita de “uma máquina muito complexa, com um tamanho de vários metros”, para ser bem-sucedida. “É necessário melhorar estes dois aspetos técnicos antes de chegar aos consumidores comuns”, esclarece.

Ainda assim, o investigador espanhol já antevê algumas potenciais utilizações para uma memória tão compacta como esta. “Esta tecnologia permitirá armazenar uma quantidade muito maior de informação, como a que é recolhida em termos de evolução dos mercados, gravações de câmara, comportamento social, fenómenos atmosféricos e astronómicos ou monitorização biológica”, explica o cientista. Trata-se, portanto, da possibilidade de armazenar informação de forma contínua durante anos a fio, sem ter de se alterar o dispositivo de memória.

A tecnologia "pode levar a todo o tipo de novas ideias e invenções, que podem ir muito além do mero 
armazenamento de dados".
Sander Otte, investigador da Universidade de Delft 

Um dispositivo de memória tão denso pode até levar à criação de novos tipos de ficheiros. Jose Lado esclarece: “Há 20 anos, os nossos discos rígidos tinham cerca de um gigabyte, e atualmente mal conseguiríamos guardar um único filme num computador antigo. Desta forma, um grande armazenamento pode levar a que sejam criados novos tipos de ficheiros, permitindo a introdução de novos produtos no mercado. Para empresas como a Dropbox, esta tecnologia poderá permitir oferecer muito mais capacidade de armazenamento aos seus clientes”. E é mesmo aos grandes centros de dados e nas empresas que oferecem armazenamento em cloud que estes investigadores acreditam que a tecnologia chegará primeiro.
 
Imagem do primeiro protótipo construído. Cada bloco representa algumas letras, e cada ponto representa 
a posição de um átomo. Aqui, está gravado um dos mais famosos discursos de Feynman.

Já ninguém usa pens, mas isto vai revolucionar a cloud

O nosso dia-a-dia informático envolve cada vez menos objetos físicos. Passámos das muitas disquetes aos poucos CDs, e desses à pen drive. Mas, com o aparecimento de serviços como a Dropbox e outros serviços de armazenamento na nuvem (cloud), deixámos de precisar de andar com esses pequenos objetos atrás. E, por isso, podemos até pensar que uma revolução como esta no âmbito do armazenamento de informação não nos diz assim tanto. Desengane-se quem pensa assim. Como explica Jose Lado, investigador espanhol do INL, “a informação armazenada na nuvem é informação guardada no disco real de alguém — Google, Microsoft ou Dropbox, por exemplo –, e por isso requer espaço físico tal como aquele que temos no nosso computador“.

Isto quer dizer que a informação que temos armazenada nas nossas contas na nuvem está armazenada em servidores das empresas que nos prestam esse serviço. Já pensou no que poderão essas empresas fazer pelos clientes se tiverem acesso a uma capacidade de armazenamento 500 vezes mais densa? “Esta tecnologia permitiria a essas empresas oferecer aos clientes uma quantidade de espaço para armazenamento muito maior, porque poderiam guardar muito mais informação nos seus discos”, esclarece Jose Lado ao Observador.

A informação armazenada na 'nuvem' é informação guardada no disco real de alguém - Google, Microsoft ou Dropbox, por exemplo -, e por isso requer espaço físico tal como 
aquele que temos no nosso computador. 
Jose Lado, investigador do INL 

“O melhor uso para esta tecnologia será mesmo nos centros de dados“, acrescenta Sander Otte. Por vários motivos. Primeiro, porque de facto são os locais em que há mais utilização de armazenamento de dados. Depois, e principalmente, porque “a memória que construímos só funciona a temperaturas muito baixas e num ambiente de vácuo”. Por enquanto ainda é impossível implementar este dispositivo em aparelhos como laptops ou telemóveis, mas, nos centros de dados, “não será difícil implementar o ambiente de conservação em frio e em vácuo”, garante Sander Otte. Para o sistema ficar estável, é preciso que se mantenha a uma temperatura de 70 kelvin (são 203ºC negativos). Como a temperatura, no fundo, é o grau de agitação dos átomos, ao aumentar a temperatura do dispositivo, os átomos começam a mexer-se, desordenam-se, e a informação perde-se.

“Na verdade, já existem esforços no sentido de desenvolver instalações em ambiente criogénico que conservam muito mais a energia do que os computadores convencionais”, sublinha o investigador holandês. Jose Lado concorda. Apesar de ser difícil implementar esta tecnologia nos dispositivos dos consumidores, “nos centros de dados irá acontecer muito antes”.

Acredito que o armazenamento centralizado de dados é muito mais inteligente do que o armazenamento local. Qual é o objetivo de ter milhões de cópias do mesmo ficheiro, armazenado em milhões de dispositivos, quando podemos ter apenas 
umas cópias, armazenadas centralmente?
Sander Otte, investigador da Universidade de Delft 

E o armazenamento centralizado, para Otte, é mesmo o caminho a seguir. “Acredito que o armazenamento centralizado de dados é muito mais inteligente do que o armazenamento local. Qual é o objetivo de ter milhões de cópias do mesmo ficheiro, armazenado em milhões de dispositivos, quando podemos ter apenas umas cópias, armazenadas centralmente?”, questiona. Mas o investigador avisa que a tecnologia só avança com o investimento de uma grande empresa. “Tudo depende de se a indústria está interessada em desenvolver esta tecnologia”, explica, acrescentando que “se se quiser mesmo desenvolver isto em tecnologia útil, é preciso uma empresa muito maior do que um grupo de investigação de uma universidade”.

Paulo Freitas vai mais longe neste ceticismo. “As tecnologias vão continuar a ser desenvolvidas no sentido do que existe atualmente, que é onde está o grande financiamento das companhias”, assume. “Depois, há os ramos laterais, que estão à procura de novas opções. Esta é uma delas, que parece promissora para alguns nichos de mercado”, sublinha. E o desafio está longe de estar completo. “O grande objetivo agora é controlar a parte da escrita”, garante Paulo Freitas, até porque “a questão da temperatura não é trivial”. E, naturalmente, aumentar a eficiência do processo. É que, com este protótipo, cada bit demora um minuto a escrever.
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* COLUNISTA DO Jornal Observador 

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