Luiz Felipe Pondé*
"Graças a Deus!". Essa frase é muito comum na boca das pessoas comuns.
Aquele tipo de pessoa "ignorante" que nunca estudou muito. Aquele tipo
desprezado por quase todo intelectual.
Émil Cioran (1991-1995), filósofo romeno, dizia que o povo simples da
Romênia sabia de tudo. Tudo que ele teve que descobrir depois de muito
estudo, insônia e sofrimento. Sua mãe, uma sábia segundo ele, sempre
soube que o destino paira sobre todos nós sem nunca ter lido uma linha
de filosofia. "O que sei aos 60 sabia aos 20, 40 longos anos de um
trabalho inútil de verificação", dizia nosso trágico romeno.
Soren Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês, dizia que "só
espíritos confusos julgam as pessoas pelos livros que leram". Essa frase
deveria ser posta na parede de cada departamento de ciências humanas no
mundo.
Blaise Pascal (1623-1662), filósofo, matemático, cientista e teólogo
francês, dizia que os verdadeiros sábios descobriam aquilo que as
pessoas comuns sabiam de modo intuitivo a vida inteira e que os falsos
sábios ("demi-sevant" nas suas palavras) eram aqueles que acreditavam em
suas próprias pequenas e equivocadas teorias.
O que há de comum nesses três casos? Os três reconhecem a validade da
sabedoria do homem e da mulher comuns. E o que isso tem a ver com a
expressão "Graças a Deus"? Esta expressão é pura sabedoria, nada tem de
ingênua. Vejamos.
Sei que inteligentinhos (confesso aqui que minha inspiração para esse
conceito antropológico de "inteligentinho" é o "demi-savant" de Pascal
citado acima) entendem essa frase como uma marca de gente crente,
alienada, ignorante, que serve de massa de manobra para ministros
religiosos picaretas de todos os tipos.
E aqui fica clara a condição inteligentinha: ele, realmente, pensa que
sacou tudo sobre religião quando diz isso (quando isso é, apenas, uma
pequena parte do que religião é de fato). Mas, um inteligentinho nunca
entende nada porque leva muito a sério sua dissertação de mestrado.
Religião é coisa muito mais séria do que pensa nosso vão ateísmo de
butique.
Ouçamos um outro grande intelectual romeno, Mircea Eliade (1907-1986),
fundador da história comparada das religiões. Eliade dizia que uma das
raízes das religiões é o "terror da contingência", aquele sentimento
ancestral de que o acaso (sinônimo de contingência) domina nossa vida
sem dó. As religiões seriam formas de lidar, compreender e dar
significado a este sentimento esmagador de que a contingência age o
tempo todo sobre nós.
Pois bem, quando uma pessoa comum diz "graças a Deus", ela não está
manifestando sua idiotice atávica (apesar de que também se pode entender
assim, mas será um entendimento inteligentinho), ela está manifestando
um profundo entendimento da nossa relação com a contingência e os modos
simbólicos de acolhê-la em nossas frágeis vidas.
"Graças a Deus" é uma profunda forma de reconhecimento da frágil beleza
da vida, e uma confissão de humildade que é, sempre, uma forma dessa
mesma beleza."
"Deus" aqui (para além do cristianismo de fundo que organiza nossa forma
de compreensão da ação da contingência no Ocidente) é essa gigantesca
contingência que tudo decide, uma vez que nunca teremos controle
absoluto sobre as variáveis em jogo na vida de cada um de nós.
No judaísmo deve-se ler o livro do "Eclesiastes" (o livro que fala que
tudo é vaidade, vento que passa...) da Bíblia Hebraica sempre que a
colheita for boa e que tivermos sucesso em nossas vidas, para lembrarmos
que se tivemos sucesso é porque Deus assim o quis.
Martinho Lutero (1483-1546), teólogo fundador do protestantismo, dizia
que o "Eclesiastes" é um livro sobre a graça, ou seja, a livre vontade
de Deus, fora de nosso controle.
Pois bem. Voltemos as pessoas comuns. "Graças a Deus", reconhecimento
intuitivo do fato de que estamos nas mãos da contingência incontrolável e
que, por isso mesmo, devemos "agradecer" a ela tudo de bom que (por
sorte) nos acontece, está em profunda consonância com a sabedoria
israelita antiga e com Eliade e Lutero.
"Graças a Deus" é uma profunda forma de reconhecimento da frágil beleza
da vida, e uma confissão de humildade que é, sempre, uma forma dessa
mesma beleza. Bom ano pra você.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência. Escreve às segundas
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/01/1846264-dizer-gracas-a-deus-e-reconhecer-a-fragil-beleza-da-vida.shtml
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