Décadence, a segunda parte de sua “Brève encyclopédie du Monde”, acompanha o nascimento, apogeu e fim da civilização judaico-cristã. Não é, escreve o filósofo Michel Onfray, nenhuma satisfação ou desgraça, mas apenas um fato.
A entrevista é de Vincent Trémolet de Villers, publicada por La Repubblica, 14-01-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Em que momento começou essa decadência?
Desde o instante em que uma criança nasce já está suficientemente
velha para morrer. O meu esquema é vitalista, supõe que da mesma forma
que um vulcão ou as placas tectônicas têm vida própria, assim as
civilizações também possuem uma vida própria. Essa vida pode ser
interrompida por um evento. Uma civilização, essa é uma verdade óbvia,
vive enquanto resiste contra aquilo que a quer morta. Enfraquecida, um
dia não terá mais forças e acabará sucumbindo. A nossa civilização tem
dois mil anos, uma idade respeitável para aceitar seu fim.
O cristianismo enfraqueceu em demasia na Europa, embora
exista um bilhão de cristãos no mundo. O Papa Francisco está no ápice de
sua popularidade. Essa religião está em vias de extinção?
Primeiro devemos ver de qual cristianismo estamos falando! Há muito
passou o tempo em que a religião católica reunia fiéis que acreditavam
na Imaculada Conceição ou na transubstanciação. O catolicismo pós-Vaticano II propiciou
a laicização da fé católica conferindo à massa dos seus fiéis uma força
de verdade quase igual àquela do pastor. O sacro e a transcendência
muitas vezes desapareceram deixando espaço a uma moral pueril como regra
do jogo contratual. Bento XVI que defendia um discreto retorno ao que havia contribuído para a destruição do Vaticano II,
viu-se frente a frente com sua própria demissão. Sua substituição por
um papa jesuíta, tão jesuíta a ponto de assumir um nome franciscano,
certamente tem um sentido inegável. O catolicismo triunfa midiaticamente
porque o Papa sabe usar a mídia, mas não por reunir ao
seu redor discípulos de um catolicismo exausto. O volume midiático e o
número de fiéis nada informam quanto à qualidade teológica das crenças.
Quando o papa Francisco fala: ‘Se um grande amigo ofender a minha mãe, pode esperar um murro’, não tenho mais tanta certeza de que Roma ainda esteja em Roma.
O que pode substituir a nossa civilização?
O que se mostrar mais forte do que ela e contra o que não poderá combater. A demografia nos mostra que a França
branca e católica está em via de desaparecer. Isso não me preocupa, não
pretendo propor nenhuma política reacionária para impedir que isso
ocorra e nem vou entrar no coro das carpideiras, cujos nomes todos
conhecemos; mas apenas faço uma constatação, assim como Michel Foucault anunciava
a morte do homem como um rosto de areia desvanece na beira da praia
varrido pelo mar, podemos anunciar a morte do homem europeu que
costumava ser prevalentemente branco e judeu-cristão. É assim, para além
do bem e do mal. A demografia testemunha em favor da África, da China, da Índia e da Ásia. A resposta à sua pergunta está naqueles países.
Você é um materialista, contudo escreve que não existe
civilização sem religião. Reconhece, assim, que o homem é acossado por
uma inquietação espiritual. Como explica essa contradição?
O ateísmo não
é majoritário em nossa civilização. Aliás, é raro. A negação de Deus,
sua explicação como uma invenção humana para suportar a evidência de que
estamos destinados a morrer, é defendida por poucos. Cada um tem a seu
dispor uma religião que lhe permite crer em algo após a morte. Esse medo
da condição de miséria do homem sem um Deus, bem analisada por Pascal
quando assevera que a condição humana é similar àquela de homens
acorrentados num subterrâneo cuja porta fica trancada e não deixa passar
nenhuma luz a não ser quando o carrasco vem buscar o próximo a ser
levado à morte, parece-me correta. A religião alimenta-se desse medo,
ela quer que o real não seja verdadeiro e que a invenção seja mais
verdadeira que o real: a morte que é verdadeira não existe, mas a
imortalidade que não existe é verdadeira: é assim em toda religião. A
civilização cristaliza-se ao redor dessa necessidade ontológica.
Ao ateísmo religioso associa o ateísmo social. Você é
impiedoso com as ideologias e o progressismo: com o comunismo, mas
também com o consumismo. Você não é, no fundo, um anárquico?
A palavra ‘anárquico’ tem uma conotação negativa: é o epíteto que
caracterizava os bombistas do século XIX. Existe um segundo sentido,
mais técnico, que remete à Proudhon,
para quem o ‘anarquia positiva’ é um modo de organização contratual da
sociedade. É a autogestão, o poder horizontal, a criação da liberdade
com fórmulas concretas, práticas e não violentas. Essa é a minha forma
de entender. O meu anarquismo social dirige-se às crenças liberais de
direita e de esquerda, que estão equivocadas porque consideram o Estado
jacobino como sendo a mecânica ideal, enquanto é preciso restituir o
poder ao povo para que esse possa gerir por si só a sua vida municipal,
local, departamental e regional e depois possa, por meio de um sistema
de parlamentos regionais que designaria as pessoas de acordo com a
lógica do mandato imperativo, administrar a sua vida nacional e
internacional. Em março irei publicar um livro sobre esse tema: a
descolonização da província. Será a minha contribuição às eleições
presidenciais.
Muitos políticos e intelectuais consideram que o saudosismo
já tenha assumido um aspecto patológico. Você não esconde uma série de
ligações humanas, regionais, artísticas e políticas. É um saudosista?
Quando é necessário, sim: a perda daquilo que era bom e melhor do que
o atual pode legitimamente despertar certo pesar. Um período de paz no
passado é melhor do que um período de guerra na atualidade, um período
passado de inteligência é melhor do que um período presente de
estupidez, uma época de liberdade é melhor do que uma época de servidão
nos nossos dias, um tempo de amor pelas letras é melhor do que o
desprezo atual por elas. Mas quando o hoje é melhor do que o ontem
prefiro o hoje: uma medicina mais eficaz para garantir mais saúde,
técnicas digitais de fácil assimilação e uso que possibilitam o acesso à
cultura, o desaparecimento de hierarquias infundadas que permite
relações verdadeiramente contratuais e imanentes, a condição da mulher
menos feudal do que antes de Maio de 1968
e muitas outras coisas. Quem só sabe ser conservador se engana, quem só
sabe ser progressista também: é preciso preservar a excelência e
desconfiar de tudo que empurra para baixo.
Você escreve que o nosso mundo está desmoronando e que esse
colapso poderia arrastar tudo consigo. Por que, apesar dessa constatação
tão sombria, continua a escrever e participar ativamente da vida
intelectual?
Porque só nos resta a elegância. Morrer em pé, com o sorriso nos
lábios, após ter pessoalmente contribuído o menos possível para o
naufrágio.
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/563997-que-a-morte-da-nossa-civilizacao-seja-com-elegancia-entrevista-com-michel-onfray
Michel Onfray...um tanto quanto pragmático; precisamos sonhar e lutar por um mundo melhor!
ResponderExcluirEsse livro está disponível no Brasil? Não encontro em nenhum lugar.
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