Lya Luft*
Não, eu não costumo sofrer do chamado “bloqueio de
escritor”. Exceto num período muito sombrio da minha vida, em que fiquei
alguns anos sem escrever, só traduzindo, em geral a página em branco,
ou melhor, a tela, é minha amiga. Talvez porque eu também não a aborreça
demais. Se nada tenho a dizer, nada digo. Não complico, não sofro: o
que há para escrever é meu, vem de mim, está lá dentro, e quando for
hora há de aparecer. Vou ler, pintar, ver tevê, ligar para uma amiga.
Fazer alongamentos no terraço.
De repente me dou conta de que tenho esta coluna por escrever: já? De novo? Sim, o tempo corre, tempus fugit, diziam os antigos. E eu, que gosto de escrever e tanto me divirto com isso, por que tardei? Acho que ando sem palavras diante do que acontece no mundo. Nestes dias, especificamente, aqui no meu país.
A chacina de Manaus em que se jogaram pedaços de corpos, e cabeças, sobre os muros de uma prisão, causando horror no país e uma torrente de discursos, promessas, projetos de parte das autoridades (não acredito em quase nada), na sexta foi acrescida pela chacina de Roraima: quase quarenta presos assassinados da mesma forma, decapitados, esquartejados, e um detalhe a mais: pelo menos três tiveram o coração arrancado. Sim, arrancado. Jogaram fora? Lançaram com um chute por cima do muro? Vão fazer um assadinho e devorar?
Não me espantaria. Pois eu, velha leitora de romances criminais e fã de Criminal Minds e outras séries, demorei a engolir esta grande pedra ainda por ser moída no meu coração e no estômago: ali, em Manaus e Roraima, não foram tenebrosos assassinos em série que cometeram os pavorosos crimes, nojentos. Foram pessoas. Foram colegas de prisão. Foram vários homens, bandos de homens, que têm pai, filho, namorada, irmão. Foram seres humanos, essas são coisas humanas?
Aqui mesmo nesta cidade minha, tão amada, que adotei e me adotou há tantas décadas, está quase normal encontrar cabeças num bairro e corpos em outro. Se assalta, se mata, quase naturalmente. Outro dia, tiroteio aqui do outro lado da rua. Muita coisa acontece em shoppings e restaurantes que não é noticiada: não podemos provocar pânico, e assim autoridades do país dizem que chacinas são acidente, ninguém se responsabiliza, há muito tempo se subestimam o poder do tráfico, a desordem generalizada, a falta de pulso firme, as fronteiras abandonadas, a grosseira irresponsabilidade geral.
Eu devia escrever aqui, como me pediram e eu prefiro, sobre coisas humanas. Então escrevo de família, encontros e desencontros, faço lá minhas filosofias pessoais. Mas hoje, de verdade, tenho de falar, bradar, gritar, escrever aos quatro ventos: o que fizeram e estão fazendo conosco, enquanto sociedade, enquanto povo, enquanto humanidade, enquanto habitantes deste pobre país? Depois da derrocada econômica causada pela irresponsabilidade e roubalheira geral, que tanto nos empobreceram, agora a derrocada moral, nós correndo pelas ruas, escondidos atrás de nossas cercas, com medo de abrir a porta, o jornal e a televisão, porque a sensação de apocalipse se avoluma como essas nuvens de tempestade em cada fim de tarde.
Sinto muito: hoje escrevo sobre coisas desumanas. E que os deuses nos ajudem.
De repente me dou conta de que tenho esta coluna por escrever: já? De novo? Sim, o tempo corre, tempus fugit, diziam os antigos. E eu, que gosto de escrever e tanto me divirto com isso, por que tardei? Acho que ando sem palavras diante do que acontece no mundo. Nestes dias, especificamente, aqui no meu país.
A chacina de Manaus em que se jogaram pedaços de corpos, e cabeças, sobre os muros de uma prisão, causando horror no país e uma torrente de discursos, promessas, projetos de parte das autoridades (não acredito em quase nada), na sexta foi acrescida pela chacina de Roraima: quase quarenta presos assassinados da mesma forma, decapitados, esquartejados, e um detalhe a mais: pelo menos três tiveram o coração arrancado. Sim, arrancado. Jogaram fora? Lançaram com um chute por cima do muro? Vão fazer um assadinho e devorar?
Não me espantaria. Pois eu, velha leitora de romances criminais e fã de Criminal Minds e outras séries, demorei a engolir esta grande pedra ainda por ser moída no meu coração e no estômago: ali, em Manaus e Roraima, não foram tenebrosos assassinos em série que cometeram os pavorosos crimes, nojentos. Foram pessoas. Foram colegas de prisão. Foram vários homens, bandos de homens, que têm pai, filho, namorada, irmão. Foram seres humanos, essas são coisas humanas?
Aqui mesmo nesta cidade minha, tão amada, que adotei e me adotou há tantas décadas, está quase normal encontrar cabeças num bairro e corpos em outro. Se assalta, se mata, quase naturalmente. Outro dia, tiroteio aqui do outro lado da rua. Muita coisa acontece em shoppings e restaurantes que não é noticiada: não podemos provocar pânico, e assim autoridades do país dizem que chacinas são acidente, ninguém se responsabiliza, há muito tempo se subestimam o poder do tráfico, a desordem generalizada, a falta de pulso firme, as fronteiras abandonadas, a grosseira irresponsabilidade geral.
Eu devia escrever aqui, como me pediram e eu prefiro, sobre coisas humanas. Então escrevo de família, encontros e desencontros, faço lá minhas filosofias pessoais. Mas hoje, de verdade, tenho de falar, bradar, gritar, escrever aos quatro ventos: o que fizeram e estão fazendo conosco, enquanto sociedade, enquanto povo, enquanto humanidade, enquanto habitantes deste pobre país? Depois da derrocada econômica causada pela irresponsabilidade e roubalheira geral, que tanto nos empobreceram, agora a derrocada moral, nós correndo pelas ruas, escondidos atrás de nossas cercas, com medo de abrir a porta, o jornal e a televisão, porque a sensação de apocalipse se avoluma como essas nuvens de tempestade em cada fim de tarde.
Sinto muito: hoje escrevo sobre coisas desumanas. E que os deuses nos ajudem.
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* Escritora.
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a9158000.xml&template=3916.dwt&edition=30423§ion=70 - Acesso 10/01/2017
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