Leandro Karnal*
Como seriam as reuniões entre o irônico Churchill com a jovem e insegura Elizabeth?
Uma página nova de um caderno escolar apresenta
letra mais cuidadosa do que as finais. O início da viagem é tomado de
expectativas risonhas, ao passo que seu fim traz o cansaço da volta
entremeado das memórias do percurso. O novo é verde, viçoso e tem o
frescor da aurora. O velho é sépia. Começamos 2017.
Gosto de filmes e séries históricas que mostrem anos
iniciais de um governo, de personagens em construção. Como eram as
pessoas que depois acumularam muita experiência? É o caso da primeira
temporada de série televisiva The Crown, do mesmo Peter Morgan que havia elaborado o roteiro de A Rainha (Stephen Frears, 2006).
The Crown mostra Elizabeth II no aprendizado
para sua longa carreira de rainha. Claire Foy faz o papel da jovem
soberana, a primeira a não ser sagrada imperatriz desde sua trisavó
Vitória, já que a Índia tinha se tornado independente em 1947. Quem olha
hoje a chefe de Estado nos seus 91 anos incompletos tem a tendência a
se esquecer de que ela é soberana desde antes do seu 26.º aniversário.
Porém, ela veio ao mundo sem ser herdeira direta do trono e passou a
infância longe do peso da coroa. Elizabeth teve de aprender.
Margeando o conhecimento histórico, séries e filmes
apresentam um certo compromisso com o real. Precisam colocar as pessoas
com seus nomes corretos, as datas e demais referências, para que todos
reconheçam verossimilhança com os fatos. As molduras são preenchidas com
imaginação. Dormiria o austero príncipe Philip, duque de Edimburgo,
completamente sem roupas? Duas vezes a série expõe as nádegas do real
consorte ao espectador. Filmar o passado implica liberdade criativa. O
público vê e confia no que observa, porque identifica as personagens
históricas, que parecem corretas. O caixilho é o Real da realeza. A
audiência cresce porque a tela é fantasiosa, aproximando as personagens
do nosso mundo (ou, ao menos, do mundo folhetinesco). A história dá o ar
de legitimidade, o enredo fornece o sabor que procuramos. Há mistura do
didático e do lúdico, cada um preenchendo as lacunas do outro.
Como
seriam as reuniões entre o irônico Churchill com a jovem e insegura
Elizabeth? Um conservador respeita muito a coroa, mas o velho
primeiro-ministro conseguiria controlar ao menos uma frase venenosa de
soslaio? A Elizabeth II verdadeira não deixou uma análise pormenorizada,
mas chorou no enterro de Churchill, em 1965. Havia afeto entre eles.
A família real emerge cheia de humanidade e
contradições. A rainha-mãe entra numa crise depressiva após a morte do
marido. Tem de deixar o palácio de Buckingham, como manda a tradição. As
filhas cresceram e deixaram de precisar dela. Torna-se uma viúva,
quando tinha menos de 52 anos. Viveu ainda meio século e teve de se
adaptar a novas realidades. Teria tido tais crises? Morreu centenária.
Teria Elizabeth II cobrado da mãe a educação deficitária que recebera? The Crown afirma
que sim. Tudo faz parte de um exercício do plausível e da busca do
diálogo com o público atual. O castelo de Mey foi, de fato, adquirido
pela rainha-mãe no norte de sua Escócia natal. Era seu refúgio e
mostrava uma vontade de isolamento. As cenas com o proprietário antigo
são buscas de substância televisiva.
Mas o centro da obra é a própria rainha Elizabeth II:
seus flashes durante a Segunda Guerra, suas memórias do tio abdicando
quando contava 10 anos de idade (ato que a acabaria conduzindo ao
trono). O centro da trama é o choque do senso de dever e suas angústias
pessoais, seu atrito com a irmã em função do amor ilícito de Margaret
com Peter Townsend, sua relação com a figura hierática de Mary de Teck,
sua avó. O choque é entre Elizabeth de Windsor com Elizabeth II, entre a
mulher e a personagem. Na prática, é o desafio de todo monarca. José
Murilo de Carvalho começa a biografia de D. Pedro II comentando o atrito
entre o imperador e Pedro de Alcântara, homem alto, tímido e de voz
fina, que queria ser professor, apenas. Objetivamente, é a colisão que
todos enfrentamos nos nossos múltiplos papéis.
Mas há uma coisa na série que provoca ligeira
melancolia. Alguns dos discursos feitos por Churchill, especialmente a
fala após a morte de George VI e a ascensão da nova rainha, citam
trechos da época, reproduzidos na tela. O gabinete escuta ansioso, na
esperança de ver fraquejar o velho leão. Há uma pausa retórica que
parece confirmar que ele está senil. Depois, segue-se uma das páginas
mais memoráveis da retórica do século 20. O discurso pode ser escutado
na internet, na voz idosa, mas firme de Churchill. Na série, o
encadeamento das cenas é muito bom, coroado com a performance teatral da
velha rainha Mary se curvando diante da neta e reconhecendo, em seu
luto profundo, que um novo poder surgia na frágil Elizabeth. O trono é
mais poderoso do que seus ocupantes. Mary se inclina enfaticamente e
demonstra que não existe mais Elizabeth de Windsor, mas apenas a rainha
Elizabeth II.
Essa é parte da magia das monarquias: a liturgia do
cargo antecede e se amplia sobre as pessoas. No campo simbólico, as
repúblicas sempre falharam miseravelmente diante da força histórica e
sagrada do trono. A célebre música de Haendel usada em coroações, Zadok the Priest, com sua grandiosidade épica, seria inconcebível numa posse em Brasília.
Mas eu falei de ligeira melancolia. Sim, porque ouvir
Churchill discursando me remete aos discursos atuais sob o trópico da
crise. Temos homens preparados e já houve até pessoas cultas na
presidência. Mas a falência da nossa retórica é brutal. Os políticos
falam mal, pronunciam de forma péssima e, quase sempre, expressam ideias
pouco elaboradas. Insultam-se, matando o decoro, a inteligência e a
esperança num Brasil melhor. Por que melancolia? Porque um dia os
discursos estiveram inscritos nas páginas da literatura mundial; hoje,
amiúde, constam em autos judiciais de acusações recíprocas de rapinagem.
Moldura e tela ficaram de qualidade duvidosa.
Volto à ilha do Norte. Talvez a magia não seja a rainha
em si, ou sua opacidade, mas como é absorvida pelo glorioso sol de
Windsor que ofusca seu despreparo. Na nossa República, a mediocridade é
exaltada e a ribalta política traz à tona o caráter tosco e raso dos
nossos líderes. Não sou um monarquista, mas confesso que ser republicano
está cada dia mais árduo... God save the Queen! Que Marianne, símbolo
da República, tenha uma ou duas aulas de etiqueta e de dignidade.
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* Jornalista. Colunista do Estadão
Fonte: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-real-da-realeza,10000097916 04/01/2016
Imagem da Internet- Cenas do filme The Crown.
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