José de Souza Martins*
"A conduta do presidente eleito, no tocante às políticas
sociais, vai na direção
oposta à da igreja que lhe
concedeu o crédito de um apoio decisivo".
Como as
religiões não são sujeitas a debate político, protegem suas contradições do
risco da curiosidade analítica dos estranhos a elas. Com isso, muita coisa que
não deveria ter o refúgio dessa imunidade acaba ficando fora do escrutínio da
consciência social. E muita coisa interessante e criativa acaba sendo ignorada.
Extensa
matéria sobre a Igreja Universal, uma igreja neoevangélica, publicada na
"Folha de S. Paulo" na semana passada, oferece um quadro interessante
sobre sua ação social que é reveladora dos aspectos minúsculos e sutis das
contradições sociais próprias de um capitalismo de periferia.
A igreja não é inocente num cenário em que ela e outras igrejas têm sido coadjuvantes do mesmo poder que estigmatiza os desvalidos e os trata, em suas políticas, como peso morto da lucratividade sem metas sociais. Um dos aspectos importantes dessa prática caritativa é a de não empurrar para Deus a responsabilidade pela aflição dos que injustamente padecem as consequências da economia irresponsável.
A igreja não é inocente num cenário em que ela e outras igrejas têm sido coadjuvantes do mesmo poder que estigmatiza os desvalidos e os trata, em suas políticas, como peso morto da lucratividade sem metas sociais. Um dos aspectos importantes dessa prática caritativa é a de não empurrar para Deus a responsabilidade pela aflição dos que injustamente padecem as consequências da economia irresponsável.
"Diferentemente do catolicismo, o membro da igreja
não é um ser passivo à espera da misericórdia
de Deus. É um ser ativo. É um
sócio da empresa
da salvação".
Na
tradição protestante, que se espraiou pelas igrejas evangélicas, especialmente
as neopentecostais, cada um espera que sua vida exemplar lhe dê concretas
evidências da prosperidade por meio da qual Deus reconhece o bom uso dos
talentos que lhe foram dados. Diferentemente do catolicismo, o membro da igreja
não é um ser passivo à espera da misericórdia de Deus. É um ser ativo. É um
sócio da empresa da salvação.
A
reportagem sobre a Universal nos mostra, pela via de uma religião, um país
cheio de brechas, a dos graves problemas sociais que a economia iníqua cria.
Não só a pobreza, mas também as distorções alienantes da sociedade de consumo.
Os voluntários fazem os curativos de que o drama social carece.
Em outros
países que conheço, a consciência da responsabilidade social em relação aos
problemas sociais é desprendida e claramente livre de sectarismos, ainda que
motivada pela moral religiosa. É assim na Itália católica e é assim na
Inglaterra anglicana, países de tradições comunitárias. Já não é assim na
América protestante, a pátria do cada um por si e Deus para todos. É a América
cuja geopolítica da desigualdade punitiva o Brasil quer copiar.
O mais
interessante na reportagem sobre a Universal é que a prática da mão estendida,
dos voluntários, identifica os lugares sociais, os pontos de encontro e os
momentos de ocorrências que atraem e concentram as vítimas dos carecimentos que
representam o lado feio de uma sociedade que achamos bela.
Desenham
uma geografia da caridade que é também uma geografia das debilidades sociais de
um subcapitalismo de insuficiências. São aqueles dos 15 projetos em que esses
voluntários atenderam, em 2018, 11 milhões de pessoas: moradores de rua,
pacientes de hospitais públicos, caminhoneiros, presidiários, dependentes de
álcool e drogas, prostitutas e travestis, policiais e outros grupos em situação
temporária ou intermitente de vulnerabilidade.
A Igreja
Universal, como aconteceu com outras igrejas evangélicas, apoiou abertamente a
candidatura de
Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.
Não se
regem pela pobreza da classificação ideológica das diferenças sociais. Adotam
uma orientação de natureza moral no socorro tópico a quem dele precisa. Há um
aspecto político nessa orientação, pela contradição que expressa. A Igreja
Universal, como aconteceu com outras igrejas evangélicas, apoiou abertamente a
candidatura de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.
Mas a
conduta do presidente eleito, no tocante às políticas sociais, vai na direção
oposta à da igreja que lhe concedeu o crédito de um apoio decisivo. As falas
impregnadas de ressentimentos fora de época e de circunstância, são dominadas
por uma raiva antibíblica e anticristã. Contrariam o que todo evangélico sabe
ser o fragmento decisivo de um versículo áureo da Bíblia: "Deus é
amor" (I João 4:8). O discurso do ressentimento e do ódio políticos não é
terrivelmente cristão. Ao contrário.
Essa
igreja, em sua ação social, tem no centro de suas concepções e de sua conduta o
ser humano e a humanidade do homem. Bolsonaro e seu governo centrado no primado
do poder, do lucro e na centralidade do capitalismo rentista, em atos
reiterados destes sete meses de mando, têm no centro a coisificação da pessoa,
reduzida à condição de objeto do lucro, de seres descartáveis da reprodução
ampliada do capital.
A questão
é saber quando esse desencontro entre a opção preferencial pela pessoa, na
prática da caridade e da compaixão, e a opção preferencial pelo dinheiro
produzirá a corrosão de uma aliança que tem se revelado antissocial.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Moleque de Fábrica (Ateliê Editorial).
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* José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Moleque de Fábrica (Ateliê Editorial).
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