sexta-feira, 16 de agosto de 2019

A ação social da Igreja Universal e a raiva anticristã de Bolsonaro

José de Souza Martins*
 
"A conduta do presidente eleito, no tocante às políticas 
sociais, vai na direção oposta à da igreja que lhe 
concedeu o crédito de um apoio decisivo".

Como as religiões não são sujeitas a debate político, protegem suas contradições do risco da curiosidade analítica dos estranhos a elas. Com isso, muita coisa que não deveria ter o refúgio dessa imunidade acaba ficando fora do escrutínio da consciência social. E muita coisa interessante e criativa acaba sendo ignorada.

Extensa matéria sobre a Igreja Universal, uma igreja neoevangélica, publicada na "Folha de S. Paulo" na semana passada, oferece um quadro interessante sobre sua ação social que é reveladora dos aspectos minúsculos e sutis das contradições sociais próprias de um capitalismo de periferia.

A igreja não é inocente num cenário em que ela e outras igrejas têm sido coadjuvantes do mesmo poder que estigmatiza os desvalidos e os trata, em suas políticas, como peso morto da lucratividade sem metas sociais. Um dos aspectos importantes dessa prática caritativa é a de não empurrar para Deus a responsabilidade pela aflição dos que injustamente padecem as consequências da economia irresponsável.

 "Diferentemente do catolicismo, o membro da igreja 
não é um ser passivo à espera da misericórdia 
de Deus. É um ser ativo. É um sócio da empresa 
da salvação".

Na tradição protestante, que se espraiou pelas igrejas evangélicas, especialmente as neopentecostais, cada um espera que sua vida exemplar lhe dê concretas evidências da prosperidade por meio da qual Deus reconhece o bom uso dos talentos que lhe foram dados. Diferentemente do catolicismo, o membro da igreja não é um ser passivo à espera da misericórdia de Deus. É um ser ativo. É um sócio da empresa da salvação.

A reportagem sobre a Universal nos mostra, pela via de uma religião, um país cheio de brechas, a dos graves problemas sociais que a economia iníqua cria. Não só a pobreza, mas também as distorções alienantes da sociedade de consumo. Os voluntários fazem os curativos de que o drama social carece.

Em outros países que conheço, a consciência da responsabilidade social em relação aos problemas sociais é desprendida e claramente livre de sectarismos, ainda que motivada pela moral religiosa. É assim na Itália católica e é assim na Inglaterra anglicana, países de tradições comunitárias. Já não é assim na América protestante, a pátria do cada um por si e Deus para todos. É a América cuja geopolítica da desigualdade punitiva o Brasil quer copiar.

O mais interessante na reportagem sobre a Universal é que a prática da mão estendida, dos voluntários, identifica os lugares sociais, os pontos de encontro e os momentos de ocorrências que atraem e concentram as vítimas dos carecimentos que representam o lado feio de uma sociedade que achamos bela.

Desenham uma geografia da caridade que é também uma geografia das debilidades sociais de um subcapitalismo de insuficiências. São aqueles dos 15 projetos em que esses voluntários atenderam, em 2018, 11 milhões de pessoas: moradores de rua, pacientes de hospitais públicos, caminhoneiros, presidiários, dependentes de álcool e drogas, prostitutas e travestis, policiais e outros grupos em situação temporária ou intermitente de vulnerabilidade. 

 A Igreja Universal, como aconteceu com outras igrejas evangélicas, apoiou abertamente a candidatura de 
Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.

Não se regem pela pobreza da classificação ideológica das diferenças sociais. Adotam uma orientação de natureza moral no socorro tópico a quem dele precisa. Há um aspecto político nessa orientação, pela contradição que expressa. A Igreja Universal, como aconteceu com outras igrejas evangélicas, apoiou abertamente a candidatura de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.

Mas a conduta do presidente eleito, no tocante às políticas sociais, vai na direção oposta à da igreja que lhe concedeu o crédito de um apoio decisivo. As falas impregnadas de ressentimentos fora de época e de circunstância, são dominadas por uma raiva antibíblica e anticristã. Contrariam o que todo evangélico sabe ser o fragmento decisivo de um versículo áureo da Bíblia: "Deus é amor" (I João 4:8). O discurso do ressentimento e do ódio políticos não é terrivelmente cristão. Ao contrário.

Essa igreja, em sua ação social, tem no centro de suas concepções e de sua conduta o ser humano e a humanidade do homem. Bolsonaro e seu governo centrado no primado do poder, do lucro e na centralidade do capitalismo rentista, em atos reiterados destes sete meses de mando, têm no centro a coisificação da pessoa, reduzida à condição de objeto do lucro, de seres descartáveis da reprodução ampliada do capital.

A questão é saber quando esse desencontro entre a opção preferencial pela pessoa, na prática da caridade e da compaixão, e a opção preferencial pelo dinheiro produzirá a corrosão de uma aliança que tem se revelado antissocial.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Moleque de Fábrica (Ateliê Editorial).

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